«Perceber a morte e
julgá-la bem» –
Homenagem ao poeta
António Osório
Se ao nascermos
todos temos por garantida a equitativa distribuição da morte, essa derradeira
niveladora, não é menos verdade que há raros seres cuja existência é desde cedo
marcada pelo signo do privilégio, e que por isso partem com um avanço tantas
vezes irrecuperável para quem deles não beneficia para os reptos da vida. Há,
sem dúvida – não seria honesto omiti-lo –, privilégios colectivos, que decorrem
de contextos históricos e geográficos, dos quais todos nós nesta ponta do
continente europeu, ou que alguns de nós, com determinado tom de pele ou de
determinado género, beneficiamos, e há os privilégios individuais, fruto da
estratificação da sociedade, passados de geração em geração dentro das mesmas
famílias. São os privilégios de classe. António Osório é – ele será o primeiro
a admiti-lo – um desses privilegiados.
Para o que aqui
nos ocupa, o privilégio económico por si só não produz nenhuma vantagem
substancial, embora uma situação material desafogada possa contribuir e muito
para o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, reduzindo a ansiedade
que a luta pela subsistência acarreta, proporcionando as condições para a
aquisição de competências diferenciadoras e criando disponibilidade para uma
abertura ao mundo sem a qual toda a arte é estéril. Mas é de outro tipo a
vantagem que, como poucos, António Osório soube respeitar e potenciar. Falo da
vantagem que decorre de uma sólida formação iniciada na infância por uns pais
que souberam e quiseram calibrar a sensibilidade do filho segundo os mais elevados
padrões culturais, transmitindo-lhe o amor pela grande poesia e pelos valores
que esta veicula, do acesso em primeira mão ao mundo da arte e ao círculo
reservado dos seus cultores. Raros são os afortunados, mas muito mais raros são
os que sabem honrar a sua sorte. O poeta António Osório, à semelhança, por
exemplo, de Saint-John Perse, soube.
Não é, pois, por
acaso que a poesia de ambos, embora diametralmente opostas no tom e nos
recursos formais que convocam, como já Robert Bréchon assinalou[1],
têm como denominador comum um desejo irrefreável de acolher e louvar, duas
das palavras-chave destas poéticas tão díspares à chegada como próximas à
partida, o que desde logo as singulariza num universo poético, como é o nosso, em
grande medida herdeiro do romantismo, com a sua exacerbação do individualismo
narcísico, e dos movimentos modernistas, com o seu estilhaçamento egóico (o «Je est un autre» rimbauldeano ou a heteronímia
pessoana), ainda derivados daquele.
Osório teve a
humildade e a hombridade de se conformar à responsabilidade que vem com o
privilégio. Só a aceitação dessa responsabilidade explica que o poeta, ao
contrário de tantos dos seus pares, acossados pela urgência de se afirmarem ou
pela necessidade de reivindicarem para si um lugar que não lhes estava
reservado mas de que se sentiam merecedores, tivesse hesitado tanto em publicar
os poemas que ia produzindo com a paciência e a meticulosidade de quem se
habituou a admirar a magnanimidade do que é grande e abstrato e a dignidade do
que é pequeno e concreto, e não transige consigo, à luz dos exemplos que
recebeu, nem se compraz, à custa dessa «vulcânica orquestração de pianíssimos»
tão laboriosamente conquistada, com as honrarias mundanas, se não forem, antes
de mais, um justo e merecido reconhecimento pela seriedade abnegada do seu zelo.
Sintomaticamente,
é desse lento e necessário amadurecimento que nos dá conta o poema que abre o
livro inaugural do poeta, emprestando-lhe o título e dando-lhe o mote que haveria
de permanecer actual ao longo de um percurso que conta já quase meio século de
actividade. Diz o poeta em «A Raiz Afectuosa»:
A Raiz Afectuosa
Com os anos
a pouco e
pouco
a raiz
afectuosa
penetrou
no fundo da
terra
até chegar
ao mais
pequeno
e mais
antigo
veio de
lágrimas.
Poema de uma
economia vocabular espantosa, outra das marcas desta poesia, técnica que não se
chega a dominar sem o concurso vigilante de um crivo moroso e equilibrado, ele combina
desde logo, com esta «raiz afectuosa» que se alimenta neste «veio de lágrimas»,
dois dos elementos fundamentais desta poética: uma ubíqua valorização da estima
e da afeição, atitude oposta à tão portuguesa autocomiseração pelas ofensas
sofridas, reais ou imaginárias, e uma aguda consciência da morte e do
sofrimento, próprios e alheios, que, mais uma vez contrariamente ao que a
tradição nos habituou, opera uma valorização da vida em toda a sua extensão e
enquanto tal.
Atitude que
entre nós tem paralelo apenas em Vergílio Ferreira, embora mais dado à lamúria
e ao queixume, e que este condensou na formulação lapidar que deu título a um
dos seus mais belos romances, Alegria
Breve: a da aceitação da vida tal como ela é, com as suas tragédias e os
seus júbilos, a do reconhecimento pela oportunidade que foi concedida a cada um
dos viventes de vir ao mundo ver como isto é, indubitavelmente preferível ao
apagamento da não-existência e à ignorância que a si mesma se ignora. Há um
poema de Décima Aurora (1982) que
cristaliza esta atitude na perfeição e que não hesito em transcrever na
íntegra:
Augúrio
Não
antecipes a tristeza
de morrer:
não queiras muito
às
lágrimas: consola-te
bebendo-as.
E sê grato ao dia
em que,
vivo, as tragaste.
Se no poema
anterior tínhamos um veio subterrâneo e neste o consolo das lágrimas como
intensificador da vida, a verdade é que, no seu conjunto, a poesia de António
Osório é pouco dada à introspecção e às monotonias do claro-escuro. Os seus
versos são cristalinos, deles dimana a leveza da luz mediterrânea, lisa, não
granular, diáfano véu pousando sobre as coisas, as pessoas e os animais, transfigurando
a dor em beleza por acção da compaixão, esse bálsamo que o egoísmo não segrega.
Não é, pois, uma
poesia marcadamente subjectiva, a de António Osório. Não que nela o sujeito poético
não compareça nem assuma a sua função de entidade enunciadora por excelência –
não é frequente que o autor dê voz aos entes sobre os quais a sua atenção se detém,
e se deles se compadece, o mesmo não é dizer que necessariamente com eles se
identifica (veja-se os poemas «Senhora Rita» ou «Lamento do Cantoneiro», de A Ignorância da Morte (1978)) –, mas
raramente fala de si, e quando o faz, é para reivindicar a probidade dos seus
juízos e a rectidão da sua conduta, como no verso, invejável a todos os títulos,
com que termina o poema «Amor de Si», de O
Lugar do Amor (1981): «Oxalá eu possa tranquilizar os meus vermes.»
É quase como se
o poeta, reconhecendo a dívida pelo privilégio de que acima falava, assumisse deliberadamente
a missão de defender os desfavorecidos pela sorte, usando em seu benefício o seu
talento de poeta, que «singulariza e distingue o que vê», como salientou Rosa
Maria Martelo a propósito desta poesia[2],
arrancando-os ao anonimato e à indistinção e conferindo-lhes uma
individualidade que, mais não podendo, os dignifica. Aliás, o civil António
Osório assumiu de facto esta missão, ao escolher a profissão – que era, de
resto, a do seu pai – de advogado, termo que na sua origem latina significava,
não se cansa o poeta de repetir, aquele que vem em auxílio de um acusado.
É, pois, com
naturalidade que na sua poesia comparecem, nas palavras do poeta em texto que
serve de introdução a Crónica da Fortuna
(1997), «curadores, […] sectários, […] muitos animais, […] árvores, […] ofícios
em extinção (como o de apanhador de ervas), […] ecologistas incómodos, meninos
que se alegram num picadeiro […]», e assim sucessivamente. No fundo, tudo o que,
pelo mero facto de existir, é digno de figurar na crónica do tempo, tudo o que
está ameaçado, tudo o que é condenado ao silêncio, tudo o que está moribundo e
é, assim, por obra e graça do discurso poético, como que embalsamado para
memória futura, constituído acervo para antepor à vinda dos bárbaros, que com a
sua efusão, o seu estrépito orgíaco, a sua cegueira punitiva, as suas soluções higiénicas,
tudo ameaçam diluir num indistinto caldo sintético.
A morte virá
certamente, e com ela o esquecimento. Mas como dizia António Osório na
curta-metragem que acabámos de ver, é preciso compreender a morte para julgá-la
bem. Todo o labor de uma vida são subsídios para essa compreensão. Quando a
morte vier e saldar a vida em destino, para retomar a ideia de André Malraux,
não é irrelevante aquilo que lhe vamos entregar, porque, e creio que essa é a
grande lição que podemos retirar da poesia de António Osório, esse será o nosso
testemunho para os que ficam e para os vindouros, e, se houvesse Deus, «Fortuna
[…] dos que poderiam apresentar-se limpamente diante [Dele]», dos «que não
causam dano nem semeiam a culpa», para só citar duas passagens desse grande
testamento que é «O Pão das Palavras».
Volto, para
terminar, ao insigne verso do poema «Amor de Si»: «Oxalá eu possa tranquilizar
os meus vermes.» Humilde intenção de quem não só diante de Deus, mas até dos
mais desprezíveis dos seres se quer apresentar impoluto, para que ninguém lhe
possa apontar o dedo e acusar de ingratidão, para que nenhum privilégio tenha
ficado sem retribuição. Exemplar sem ser grandiloquente, incorruptível sem ser
heróico, e sem pecado, além do pecado original de amar com a violência e a candura
do amor.
[1]
«A poesia de António Osório não é a grande orquestra de Claudel ou os grandes
órgãos de Saint-John Perse, é antes uma música de câmara, discreta, quase
silenciosa, interior.» Bréchon, Robert, in António
Osório, Barca do Mundo – I, 1999 (citado em Osório, António, A Luz Fraterna, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2009, p. 630).
[2] Martelo,
Rosa Maria, A Forma Informe – leituras de
poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 134.