Ódio à Poesia ou o
Silêncio de Rimbaud
Nota à margem de uma
tradução
A minha vida mude-a Deus ou finde-a…
Fernando Pessoa
Dezanove anos é tempo mais do que
suficiente para mudar a vida. Talvez seja até demasiado tempo. Para tanto, tanto
seria escusado. E se então se acorda dentro da mesma, supérflua vida, com a
mesma, supérflua vida por viver toda uma longa, indecorosa vida — que fazer? Já
se atravessou o Inferno, já se avistou um ou outro cometa, já se exercitou este
e aquele poder sobrenatural, já se profetizou esta e aquela ocorrida desgraça, até
já se fez a experiência do divino (afinal, uma pequena decepção). Dezanove anos
e tudo feito, tudo visto, tudo vivido dentro da mesma, insípida vida. Dezanove
demorados anos. É quanto basta. E então — que fazer?
Palmilhe-se o mundo, o sempre
mesmo mundo. Vá-se a pé de um lugar para o outro, suba-se as montanhas nevosas
com o farrapo das roupas e o puído cachimbo da infância, pernoite-se ao luar, sob
a cálida emanação dos pólos, sugue-se a avara sopa dos mosteiros, libe-se a
peçonha das amoras regurgitada pelos corvos no derradeiro estertor da sua opulenta
envergadura, coza-se a cicuta dos caminhos em águas morbosas extraídas de poços
secos. Aliste-se então num exército com vista à grande honra da deserção,
embarque-se nos grandes navios do século, conheça-se o mar já antes adivinhado (e,
afinal, outra pequena decepção — na infância é que tudo é imenso), solte-se
imprecações ao luzeiro de um fogo de santelmo e desemboque-se, por fim, no Corno
de África. Somália, Etiópia, o deserto. Qualquer lugar é bom para se guardar o
nosso grande, o nosso rude, o nosso fero silêncio. Sim. Dezanove anos é tempo
mais do que suficiente para mudar a vida. Quem o não consiga, que se cale para
sempre. Ou fale e se cubra de ridículo. Felizes os que sabem capitular antes de
se tornarem eloquentes.
Rimbaud esperou dezanove longos
anos. O amor por reinventar, a revolta por eclodir. Tinha dezanove anos. Disse
quem era, ao que tinha vindo e como falhara. Descreveu o Inferno e deu-lhe o
seu verdadeiro nome: esperança. E depois calou-se.
Rimbaud não foi precoce, nós é
que somos tardios. E eloquentes. Muito para lá do nosso tempo. É por isso que
não somos Rimbaud.
João Moita