quarta-feira, 30 de março de 2011

Emily Dickinson (versão) (II)

After great pain, a formal feeling comes –
The Nerves sit ceremonious, like Tombs –
The stiff Heart questions was it He, that bore,
And yesterday, or Centuries before?

The Feet, mechanical, go round –
Of Ground, or Air, or Ought –
A Wooden way
Regardless grown,
A Quartz contentment, like a stone –

This is the Hour of Lead –
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the Snow –
First – Chill – then Stupor – then the letting go –


*

À grande dor sucede a lassidão –
Os Nervos assentam cerimoniosos, como Jazigos –
O rígido Coração pergunta: Suportei?,
E foi Ontem, ou há Séculos?

Os Pés, maquinais, giram em torno –
Do Chão, do Ar, ou do Nada –
Um caminho de Madeira
Posto ao acaso,
Uma satisfação de Quartzo, uma pedra –

Esta é a Hora de Chumbo –
Para a recordar, sobreviver-lhe,
Como Quem ao resfriar evoca a Neve –
Primeiro – o Frio – a seguir o Torpor – a Renúncia depois.


Emily Dickinson
- trad. minha

terça-feira, 29 de março de 2011

Emily Dickinson (versão)

A Death blow is a Life blow to Some
Who till they died, did not alive become -
Who had they lived, had died but when
They died, Vitality begun.

*

Um sopro de Morte é um sopro de Vida para Aqueles
Que até morrerem não haviam nascido -
Aqueles que, tendo vivido, morreram, mas que
Ao morrerem desposaram a Vitalidade.


Emily Dickinson
- trad. minha

sábado, 19 de março de 2011

Resumo - A poesia em 2010, com poema de Miasmas

Na edição deste ano vem um poema de Miasmas, escolhido por José Tolentino Mendonça.

XXXI

Em nome de nada.
Do êxtase recolho a nova moral.
De tudo fujo.
Forjo os pólos da minha dissensão.
Em nome de nada.
Escrevo para a gaguez de Deus.
Oculto-me, desvelo-me:
sou uma assombração.
Estes são os liames da agressividade.
Neles me penduro para a inflexão do canto.
Fujo.
Deus não receberia o meu amor em holocausto.
Vivo para as vésperas
e juro:
Deus não saberia alentar o meu esquecimento.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O conceito de Poesia enquanto linguagem em estado de nascimento em Tatuagem & Palimpsesto (Assírio & Alvim, 2010), de Manuel Gusmão

Uma questão que perpassa o livro de Manuel Gusmão que colige os ensaios que o poeta escreveu ao longo de várias décadas de investigação sobre o fenómeno poético, e que este ano foi dado à estampa sob o título Palimpsesto & Tatuagem, é a da posição da poesia no quadro alargado das potencialidades da linguagem humana. O autor recusa veementemente a ideia de que a poesia efectuaria um desvio às formulações da linguagem convencional, apresentando uma língua segunda dentro da língua primeira, em cujo reduto se alicerçaria a essência da poesia. Esta ideia tem a sua génese nas investigações linguísticas levadas a cabo pelos formalistas russos no início do séc. XX, com particular incidência no conceito de Jakobson da função poética da linguagem, que se oporia às funções referencial, emotiva, conativa, fática e metalinguística. No âmbito do acto comunicativo, a função poética da linguagem ocorreria quando a tónica do discurso incidisse na mensagem, isto é, na capacidade dos vocábulos de gerarem referentes que deles dependessem imediatamente e para eles remetessem, por oposição à enunciação com a tónica em cada um dos pólos emissores e receptores do discurso. A linguagem poética seria aquela que se eximisse à quotidianidade dos actos de discurso que se firmam e são suporte de acções para os quais são convocados mas que lhes são extrínsecos, estando por isso ao dispor dos mecanismos de alienação social cristalizados em formas de recorrência discursiva.
No seu conjunto, os ensaios de Manuel Gusmão rejeitam esta ideia de essencialidade da linguagem poética, apresentando em alternativa o conceito de «Poesia enquanto linguagem em estado de nascimento». Não é porque a linguagem poética funda uma zona contígua à da linguagem comum que ela se pode libertar de toda a carga ideológica ou significativa, afirmação difícil de compreender, uma vez que um desvio implica uma mudança de sentido mas não a transformação radical do que se é, mas antes porque a linguagem poética repete o movimento do nascimento da linguagem, apresentando-a livre da carga que o uso lhe traz.

Para ajudar a esclarecer este conceito de linguagem em estado de nascimento, Manuel Gusmão salienta o carácter utópico da linguagem. A u-topia da linguagem deriva da faculdade que esta tem de «fazer um uso infinito de recursos finitos» (p. 170), isto é, da imprevisibilidade do acontecer linguístico que remete cada acto de linguagem, ou pelo menos o acto de linguagem com intenção literária, para um não-lugar que devém lugar quando concretizado em discurso. Não se trata de um regresso à origem da linguagem, esse momento mítico em que o homem conquistou o mundo para si de uma vez para sempre ao atribuir nomes aos objectos, mas do reconhecimento de uma «origem perpétua» da linguagem, que nunca pára de nascer e de «refazer as imagens do mundo pela alteração da sua topologia, de reinventar o amor, de mudar a vida, ou mesmo de produzir as várias vidas que são devidas a um mortal» (p. 183). Vemos, assim, a ligação perene entre poesia e intuição do mundo pelos homens, sempre condicionada pelas possibilidades experimentadas da linguagem. A poesia permite novas intuições e, logo, novos mundos, novas realidades e, sobretudo, novas liberdades; ela é, portanto, a «ilusão necessária do [nosso] auto-engendramento» (idem). Nesta medida, a poesia afirma-se como «construção antropológica», em que o devir outro do poeta (o nosso autor segue neste passo Rimbaud) permite criar novas formas de vida humana, colocando-nos num plano exotópico à nossa percepção de tempo, espaço e cultura, plano que, segundo Bakthine, é o único que possibilita a compreensão de uma totalidade (p. 186-7).
Ao inscrever uma singularidade no «comum», valorizando a «possibilidade de singularização” (p. 16) contida nos recursos infinitos da linguagem, ao arrancar uma forma assinada a uma forma neutra preexistente, o poeta «põe a língua a funcionar» (p. 15), operando uma génese continuada da linguagem. Isto é, o mesmo vocábulo terá tantos nascimentos quantas actualizações lhe forem concedidas pelo fazer poético.
Desenraizada da concepção de uma suposta essencialidade, nem por isso podemos afirmar, como se torna corriqueiro, que tudo pode ser poesia. Os detractores daquilo a que eles próprios gostam de chamar «poesia pura» não podem escamotear que, sendo a poesia a concretização de uma possibilidade da linguagem, não deixa também de estar dependente de uma disposição particular para fazer funcionar a língua, trazendo à colação o espanto pelo mundo que agora, escrito no poema, se diz pela primeira vez. A recusa em confiar na linguagem acarreta a «impossibilidade de conhecer e de se (re)conhecer; a impossibilidade de viver e de amar (…), a impossibilidade de aceitar o corpo próprio, assim como o pavor da morte, em suma, a dificuldade em aceitar a vida que é dada viver» (p. 254). É o estranhamento, mais do que o lamento pela falência da Verdade, o melhor indicador de estarmos na presença de uma língua que nasce para cantar o mundo e engendrar o amor.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Antonio Gamoneda (VI)

Mãe: quero esquecer
esta crença sem descanso. Ninguém
viu um coração habitado.
Porquê este pensamento irreparável,
esta crença sem descanso?

Estar desesperado,
estar quimicamente desesperado,
não é um destino nem uma verdade.
É horrível e simples
e mais do que a morte. Mãe:
dá-me as tuas mãos, lava
o meu coração, faz alguma coisa.

Antonio Gamoneda, Exentos I, 1959-60 e 2003.
- tradução minha -