domingo, 23 de dezembro de 2012

Gustave Achille Guillaumet, Dans le désert, 1867.


Quando cheguei ao deserto, vi que tinha regressado.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012


Charles-François Daubigny, La neige, 1873

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Pormenor da Catedral Notre Dame de Paris

Para me salvar,

esperei até petrificar o coração.
Sacré-Coeur

À saída, o mendigo
pedia com a mão de Deus.

domingo, 21 de outubro de 2012

Antonio Gamoneda, nova série, II

Había
vértigo y luz en las arterias del relámpago,
fuego, semillas y una germinación desesperada.

Yo desgarraba la imposibilidad,
oía silbar a la máquina del llanto y me perdía en la espesura vaginal. También
entraba en urnas policiales. Así
olvidaba los ojos de mi madre.
                                        Vivía
Parece ser.
                Vivía.

Ahora mismo atiendo distraído a mi estertor. No hay en mí memoria ni olvido; única y simplemente lucidez.

Han desaparecido los significados y nada estorba ya a la indiferencia.

                                                                                                                           Definitivamente, me he sentado

a esperar a la muerte
como quien espera noticias ya sabidas.

*

Havia
vertigem e luz nas artérias do relâmpago,
fogo, sementes e uma germinação desesperada.

Eu rasgava a impossibilidade,
ouvia assobiar a máquina do pranto e perdia-me na espessura vaginal. Entrava
também nas urnas policiais. Esquecia
assim os olhos da minha mãe.
                                       Vivia.
Acho que sim.
                  Vivia.

Agora mesmo observo distraído o meu estertor. Não há em mim memória nem esquecimento: unica e simplesmente lucidez.

Desapareceram os significados e nada estorva já a indiferença.

                                                                                                                      Definitivamente, sentei-me
à espera da morte
como quem espera notícias já sabidas.


Antonio Gamoneda,
poema de Canción Errónea, 2012.
 - trad. minha

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Antonio Gamoneda, nova série, I

Huyes de ti para alcanzar verdades que no existieron nunca.

Hablas de un ave que atravesó tus sueños. Te engañas: tú, aun no siendo, eres su única realidad.

“La rosa es bella, ¿y para qué?”
                                         Así son las preguntas prendidas de tus labios; las grandes, las inútiles preguntas.

“Ignorar para ver”, dices también.
                                             Pero ¿qué ver? Tan sólo lograrás que la luz arda en tus ojos. Compréndelo:
no existe más que una palabra verdadera:                                                        

                                                         no.

*

Foges de ti para alcançar verdades que nunca existiram.

Falas de uma ave que atravessou os teus sonhos. Enganas-te: tu, ainda que não sendo, és a sua única realidade.

“A rosa é bela, e para quê?”
                                     Assim são as perguntas suspensas dos teus lábios; as grandes, as inúteis perguntas.

“Ignorar para ver”, dizes também.
                                              Mas, ver o quê? Conseguirás apenas que a luz arda nos teus olhos. 

        Compreende:
Só existe uma palavra verdadeira:                                              

                                              não.


Antonio Gamoneda,
de Canción Errónea, 2012.
 - trad. minha

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Crítica na Rock n'Heavy ao EP de estreia dos Daughters of Lot

Foi escrita por Rui Carneiro e pode ser lida aqui:

"The Daughters Of Lot, banda que junta cinco músicos de Alpiarça, e que conta já com três anos nestas lides, apresenta, depois de um interregno devido à saída do baixista, o EP de estreia: “Sulfur Rain Pours Onto Our Souls”.

De um cardápio que, possivelmente, não para de crescer, os músicos selecionaram três temas para este EP. As honras de abertura cabem a “The Suffering”, composição que, partindo de uma toada de melopeia saturniana, rapidamente evolui para uma sistematização cada vez mais presente e insinuante da paleta instrumental burilada por Miguel Fernandes, o “artifex” da banda. Não há barreiras na tessitura musical dos TDOL, até porque aquilo que flui do jogo de sedução entre voz e instrumentos é o desejo libidinoso pela desconstrução e eterna reformulação das linhas rítmicas e melódicas que radicam, evoluem e fenecem ao longo das pulsões e circunvalações de uma catarse feita de silêncios, interlúdios e irrupções, fulcro e ocaso de uma imagética em que “o prazer é uma deformação da dor”

A próxima, “The Edge Of a Lie”, confirma desígnios musicais que a banda classifica como “progressivos”, uma vez que é notória a preocupação em complexificar cada um destes “episódios”, construindo algo que se assemelha a uma filigrana musical, tal é o rigor no processo criativo, lapidando cada instante com a minúcia que o ourives dedica a uma jóia requintada.

“Sanctuary” encerra este tríptico musical, descarregando um manifesto de rock corrosivo. Miguel Fernandes puxa o som da bateria para a frente, violentando peles e tímpanos. As guitarras, que anteriormente deambulavam por paisagens etéreas e atmosféricas, ganham agora contornos ásperos e virulentos, semeando ondas de distorção em arrojos fulgurantes, voluptuosos e tonitruantes.

Assim sendo, a música dos TDOL parece comungar da conotação genesíaca que preside ao episódio bíblico que dá nome à banda. Profundamente humana, e por isso fatalmente marcada pelo desejo de transgressão, de consumação exacerbada da nossa volúpia ôntica: “As filhas de Lot fundam o seu território no enclave do desejo com o estímulo. O ébrio é para elas apurador de pulsões: transmissão e transfusão. As filhas de Lot privilegiam a obscuridade e mergulham o seu afecto nas próprias transgressões. Elas preparam a iridescência do que devém, são da ordem do fantasmático.” Na fração nebulosa, abismal e nefelibata, entre a perceção e a sensação, no limbo etéreo entre o sensível e o onírico evolui esta fantasmagoria musical: “Depois do incesto, enquanto o seu pai dorme, as filhas de Lot, nuas, sentam-se junto ao fogo e olham-se. A troca de olhares resulta em música.” Processo transfigurativo, o corpo do outro, maculado pela corrupção do desejo carnal, resolve-se sinestesicamente através da visão oblíqua do “eu” no “outro”, processo demiúrgico e dionisíaco que cria a arte.

Recordamos, a propósito, e para finalizar, as palavras do poema de Fernando Pessoa:

«Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é»"

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

The Daughters of Lot - Sulfur Rain Pours Onto Our Souls (EP)


Na palma das suas mãos
os sulcos da vida são fundos como uma vingança:
definitivas são as suas carícias.



1. The Suffering
2. The edge of a lie
3. Sanctuary

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Alejandra Pizarnik (I)

16

construíste a tua casa
emplumaste os teus pássaros
golpeaste o vento

terminaste sozinha
o que ninguém começou
 
Alejandra Pizarnik
- trad. minha

sábado, 4 de agosto de 2012

Wistawa Szymborska (II)

A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás por curiosidade.
Mas podem ter sido outras as razões.
Olhei para trás lamentando a perda do meu vaso de prata.
Descuidada, enquanto atava as sandálias.
Para que parasse de contemplar a nuca virtuosa
do meu marido, o pescoço de Lot.
Por causa da súbita convicção de que se eu caísse morta
ele nem sequer vacilaria.
Por causa da desobediência dos humildes.
Para certificar que não estávamos a ser seguidos.
Abalada pelo silêncio, acreditando que Deus mudasse de ideias.
As nossas duas filhas já tinham desaparecido atrás da colina.
Senti a idade dentro de mim. Distância.
A futilidade da peregrinação. Torpor.
Olhei para trás pousando o alforje.
Olhei para trás por não saber onde pôr os pés.
Serpentes apareceram no caminho,
aranhas, ratos do campo, abutres.
Não eram nem bons nem maus – cada ser vivo
arrastava-se simplesmente ou esperava com a mole em pânico.
Olhei para trás em desolação.
Com a vergonha de termos roubado.
Querendo chorar, ir para casa.
Ou apenas porque uma rajada de vento
despenteou-me o cabelo e levantou-me vestido.
Parecia que nos estavam a observar dos muros de Sodoma
rebentando em estrondosas gargalhadas uma e outra vez.
Olhei para trás em fúria.
Para saborear o seu terrível destino.
Olhei para trás por todas estas razões.
Olhei para trás involuntariamente.
Apenas porque uma pedra resvalou-me debaixo dos pés, rosnando para mim.
Por causa de uma súbita quebra no trilho.
Um roedor cambaleou nas suas patas dianteiras sobre o precipício.
Foi então que ambos olhámos para trás.
Não, não. Eu corri,
eu rastejei, eu levitei
até que a escuridão caiu dos céus
e com ela granizo abrasador e pássaros mortos.
Não conseguia respirar e girava e girava.
Quem quer que me visse pensaria que estava a dançar.
Não é inconcebível que os meus olhos estivessem abertos.
É possível que tenha caído encarando a cidade.




Wistawa Szymborska
- trad. minha a partir da versão em inglês de Stanislaw Baranczak e Clare Cavanagh

Wistawa Szymborska (I)

Nota de agradecimento

Devo tanto
àqueles que não amo.

O alívio com que reconheço
que eles são mais importantes para outros.

A felicidade de não ser
o lobo para as suas ovelhas.

A paz que sinto ao pé deles,
a liberdade –
isso o amor não mo pode dar
nem tirar.

Não fico à espera deles,
angustiada à janela.
Quase tão paciente
quanto um relógio de sol.
Compreendo
o que o amor não compreende,
e perdoo
o que o amor nunca perdoaria.

De um encontro até à chegada de uma carta
são só alguns dias ou semanas,
não uma eternidade.

As viagens com eles são sempre tranquilas,
concertos são ouvidos,
catedrais visitadas,
paisagens contempladas.

E quando sete colinas e sete rios
nos separam,
essas colinas e esses rios
podem ser encontrados em qualquer mapa.

Fico-lhes reconhecida
por viver a três dimensões,
num espaço sem lirismo e sem teorias
com um horizonte genuíno e inconstante.

Eles próprios não se apercebem
de quanto guardam nas suas mãos vazias.

“Não lhes devo nada”,
seria a resposta do amor
a esta pergunta aberta.


Wistawa Szymborska
- trad. minha a partir da versão em inglês de Stanislaw Baranczak e Clare Cavanagh

sábado, 21 de julho de 2012

Yannis Ritsos (IV e V)

Ela viu o belo ladrão
saltar
pela janela
Desde então
deixa a porta
escancarada
As jóias que sobraram
num lugar visível
Ele nunca regressou

Atenas, 9-5-78


*

Quando inalaste o perfume
de uma rosa
cresceste meio metro
agora não cabes
na porta
a noite veio
arrefeceu
apareceram as estrelas
os lobos vieram

Atenas, 29-2-80


Yannis Ritsos
- trad. minha a partir da versão em inglês de Manolis

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Yannis Ritsos (III)

Assassinos Fictícios

Esta mulher – nem sequer sei como se chama – Catarina? Eurídice?
Agride-me roça a faca pelo meu pescoço
Sei que é uma faca de papel
Finjo estar morto entreabro os olhos
Vejo melhor assim
De noite levanto-me vou à loja do ferreiro com as suas ratazanas
Acendo a fogueira atiço-a com os grandes foles da igreja
Preparo as quatro ferraduras o cálice fundo
Afio a grande faca de dois gumes e entrego-lha

Em mãos secretamente voluptuosamente por baixo da almofada 

Atenas,  4-5-71

Yannis Ritsos
- trad. minha a partir da versão em inglês de Manolis

terça-feira, 17 de julho de 2012

Yannis Ritsos (II)

Consequências Desconhecidas 

Durante anos e anos ele ansiou ele despiu-se
diante de grandes e pequenos espelhos
diante de cada janela ele ensaiou cuidadosamente
uma e outra pose tentando decidir-se inventar
aquela que lhe fosse mais natural para que ele se tornasse
a estátua perfeita de si mesmo – ainda que soubesse
que as estátuas são frequentemente feitas
para os mortos e ainda mais frequentemente
para algum deus irreal e desconhecido 


Atenas, 17-3-71

Yannis Ritsos
- trad. minha a partir da versão em inglês de Manolis

sábado, 2 de junho de 2012

10 teses sobre a mistificação das potencialidades redentoras da poesia

1) A poesia não actua sobre o homem; ele é que actua por ela.

2) O poema não acrescenta o homem; o homem é que deixa alguma coisa no poema.

3) A poesia não redime; ela manifesta a necessidade de redenção. 

4) O poema é sintoma, não lenitivo.

5) O poema é a topologia de uma privação.

6) O poema não substitui o que, por estar ausente, é a causa da privação.

7) O poema ocupa o lugar da privação, mas não anula a privação.

8) O poema não é Deus; o poema é o lugar da ausência de Deus.

9) A poesia apela à redenção, é chamamento, não resposta.

10) A poesia quer estar próxima da redenção; não o querer seria estar mais longe.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Tomas Tranströmer (II)

AGITATED MEDITATION

A storm drives the mill sails wildly round
in the night’s darkness, grinding nothing. -You
___are kept awake by the same laws.
The grey shark belly is your weak lamp.

Shapeless memories sink to the sea’s depths
and harden there to strange columns. -Green
___with algae is your crutch. A man
who takes to the seas comes back stiffened.

*

MEDITAÇÃO CONTURBADA

A tempestade abate-se um moinho move-se descontrolado
na escuridão da noite, moendo nada. – As
___mesmas leis te mantêm acordado.
O cinzento do ventre do tubarão é a tua lâmpada fraca.

Memórias informes descem às profundezas do oceano
e lá endurecem em colunas estranhas. – Verde
___e com algas é a tua muleta. Um homem
que vá para o mar regressa endurecido.

Tomas Tranströmer
- trad. minha (a partir da tradução inglesa de Robin Fulton)