domingo, 22 de novembro de 2015

s/ título

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Poema inédito publicado no n.º 116 da revista Turia, com tradução de Antonio Gamoneda.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Hans Magnus Enzensberger (II)

Outras Razões Para os Poetas Não Dizerem a Verdade

Porque o momento
em que a palavra feliz
é pronunciada
não é o momento de felicidade.
Porque o homem sedento
jamais apregoa a sua sede.
Porque proletariado é uma palavra
que não sairá da boca do proletariado.
Porque aquele que desespera
não sente vontade de dizer:
“Estou a desesperar”.
Porque orgasmo e orgasmo
ficam em galáxias diferentes.
Porque o moribundo,
longe de proclamar:
“Estou a morrer”, apenas liberta
um vago estertor
que não conseguimos compreender.
Porque são os vivos
que rebentam os ouvidos dos mortos
com as suas atrocidades.
Porque as palavras chegam sempre
demasiado tarde ou demasiado cedo.
Porque é sempre outra pessoa,
sempre outra pessoa,
que se encarrega de falar,
e porque aquele
de quem se fala
fica em silêncio.

Hans Magnus Enzensberger, The Sinking of the Titanic, 1980.

- trad. João Moita a partir da tradução inglesa do texto alemão feita pelo próprio autor



*

Further Reasons Why Poets Do Not Tell the Truth

Because the moment
when the word
happy
is pronounced
never is the moment of happiness.
Because the thirsty man
does not give mouth to his thirst.
Because
proletariat is a word
Which will not pass the lips of the proletariat.
Because he who despairs
does not feel like saying:
“I am desperate.”
Because orgasm and
orgasm
are worlds apart.
Because the dying man,
far from proclaiming:
“I die,” only utters
a faint rattle,
which we fail to comprehend.
Because it is the living
who batter the ears of the dead
with their atrocities.
Because words come always
too late or too soon.
Because it is someone else,
always someone else,
who does the talking,
and because he
who is being talked about,
keeps his silence.


Hans Magnus Enzensberger, The Sinking of the Titanic, 1980.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Hans Magnus Enzensberger (I)

O Naufrágio do Titanic

Canto Primeiro


Alguém escuta, espera,
sustém a respiração, perto,
aqui. Diz: esta é a minha voz.

Jamais, diz ele,
regressará esta calmaria,
este tempo quente e seco.

Ecoa-se a si mesmo
na sua cabeça gorgolejante.
Diz: além de mim, não há ninguém

aqui. Esta deve ser a minha voz.
Espero, sustenho a respiração,
escuto. O rumor distante

nos meus ouvidos, antenas
de carne macia, nada significa.
É apenas o bater

do sangue nas minhas veias.
Durante muito tempo esperei,
sustendo a respiração.

Ruído branco nos receptores
da minha máquina do tempo.
Estática cósmica muda.

Ninguém vem ou pede ajuda.
Nenhum sinal de rádio.
Ou isto é o fim,

digo, ou ainda nem
chegámos a começar.
Aqui estamos! Agora!

Algo que arranha. Um rangido. Um rasgão.
É agora. Uma unha gélida
raspa na porta e pára imediatamente.

Algo cede.
O som de uma tela,
de uma alva faixa de linho

a ser rasgada, devagar primeiro,
a pouco e pouco mais bruscamente
até se dividir em dois com um silvo.

Isto é o princípio.
Escutem! Não ouvem?
Segurem-se, por amor de Deus!

E depois silêncio novamente.
Apenas o tilintar da louça
nos armários,

um estremecimento de cristal,
cada vez mais suave,
e desaparece.

Queres dizer que isto
foi tudo?
Sim. Foi tudo.

Isto foi o princípio.
O princípio do fim
é sempre discreto.

São agora 23h40
a bordo. Há um golpe
de duzentas jardas

debaixo da linha de água
no casco laminado, aberto
por uma gigantesca faca.

A água infiltra-se
nas divisórias.
Trinta jardas acima do nível do mar

Impassível o iceberg passa,
desliza além do navio resplandecente
e desaparece na escuridão.


Hans Magnus Enzensberger, The Sinking of the Titanic, 1980.

- trad. João Moita a partir da tradução inglesa do texto alemão feita pelo próprio autor



*

The Sinking of the Titanic

First Canto


There is someone who listens, who waits,
holds his breath, very close by,
here. He says: This is
my voice.

Never again, he says,
it is going to be as quiet,
as dry and warm as it is now.

He hears himself
in his gurgling head.
He says: There is no one here

but me. This must be
my voice.
I wait, I hold my breath,
I listen. The distant rumor

in my hear, antennae
of soft flesh, means nothing.
It is just the beat

of my blood on the veins.
I have been waiting for a long time,
holding my breath.

White noise in the earphones
of my time machine.
Mute cosmic static.

Nobody knocks or cries for help.
No radio signal.
Either this is the end,

I tell myself, or else
we have not yet begun.
Here we are! Now!

A scraping sound. A creaking. A crack.
This is it. An icy fingernail
scratching at the door and stopping short.

Something gives.
An endless length of canvas,
a snow-white strip of linen

being torn, slowly at first
and then more and more briskly
being rend in two with a hissing sound.

This is the beginning.
Listen! Don’t you hear it?
Hold fast, for God’s sake!

Then there i silence again.
Only a thin tinkle is to be heard
in the cupboards,

a trembling of crystal,
more and more faintly
and dying away.

Do you mean to say
that was all?
Yes. We’ve had it.

This was the beginning.
The beginning of the end
is always discreet.

It is now 11:40 p.m.
on board. There is a gash
of two hundred yards

underneath the waterline
in the steel-plated hull, slit
by a gigantic knife.

The water is rushing
into the bulkheads.
Thirty yards above sea level

the iceberg, back and silent, passes,
glides by the glittering ship,
and disappears in the dark.


Hans Magnus Enzensberger, The Sinking of the Titanic, 1980.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Revista Turia 116


O número 116 da revista Turia, no qual participo com um poema inédito traduzido por Antonio Gamoneda, será apresentado na sexta-feira, dia 20 de Novembro, pelas 17h, na Fundação Caloust Gulbenkian, Lisboa.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A Afronta do Seu Silêncio



- Testemunho de um descrente –

[texto lido a 23/10/2015 na mesa redonda subordinada ao tema “O Silêncio de Deus” da VI Jornada de Teologia Prática na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa]

Queria começar por agradecer ao Instituto Universitário de Ciências Religiosas e ao Centro de Estudos de Religiões e Culturas que, na pessoa do Pe. José Tolentino Mendonça, tiveram a amabilidade de me convidar para esta Jornada de Teologia Prática. O convite apanhou-me de surpresa, tanto mais que eu não sou teólogo nem tenho qualquer tipo de formação ou conhecimentos especializados na área, mas não pude senão aceitar o desafio que me colocava de pensar a minha relação com Deus ou, mais concretamente, a minha relação com o silêncio de Deus, o que para um descrente como eu se reveste de uma urgência maior, dado que considerar o silêncio de Deus, ao invés de considerar apenas a inexistência de Deus, levanta o problema de saber em que medida é que a preposição que faz do silêncio um atributo de Deus não trai uma propensão para a crença ou, pelo menos, para a assunção de Deus enquanto possibilidade legitimada não só pela linguagem, como por um modo específico de sentir e de atribuir sentido ao mesmo silêncio que devia ser, por definição, ausência de sentido. Pois que se admito que o silêncio não é em absoluto – o que tão-pouco conseguiria conceber –, mas um predicado de outrem, predicado que tem a particularidade de efectuar o duplo movimento da ocultação e, ao mesmo tempo, da revelação desse outrem pela e na ocultação, sou forçado a admitir que se não faço o reconhecimento de Deus, tal deve-se ou a uma insuficiência do meu aparelho perceptivo, a uma imperfeição do meu diapasão que afina noutras frequências, ou à própria constituição desse silêncio enquanto vontade divina de se não dar a conhecer, o que, num caso como no outro, explicaria o meu malogro mas não traria tranquilidade ao meu espírito.

Mas pode um descrente viver em paz com a sua descrença? Tanto quanto um crente deve viver em paz com a sua crença, e pelas mesmas razões, dir-me-ão alguns de vocês. Colocar o problema da fé é, pois, colocar o primeiro problema sério da filosofia. Só depois se torna pungente o problema levantado por Albert Camus, em O Mito de Sísifo, de saber se a vida merece ser vivida. Porque se a consciência nasce do espanto de haver o que há, em vez de haver outra coisa ou não haver coisa nenhuma, é natural que a nossa primeira interrogação se dirija para o ser do mundo e a existência do que o explique, e só depois nos voltemos para o problema do julgamento que fazemos da nossa situação nesse mundo.

Colocar o problema da fé, contudo, não é para mim o mesmo que dar o primeiro passo em direcção à fé. A inquietação que atormenta tanto o verdadeiro crente como o verdadeiro descrente, o inconformismo latente que anima aqueles que vivem intensamente o irresolúvel problema de Deus, não os irmana no que seria o tortuoso caminho da fé. Como disse Raul Brandão na sua obra-prima, Húmus, «se Deus existe eu sou um homem – se Deus não existe eu sou outro homem completamente diferente»[1]. Não é irrelevante a resposta que me dê à questão da existência Deus. Dela vai depender o homem que me concebo e a minha atitude perante o mundo e a vida. Não se trata tanto do «se Deus não existe tudo é permitido» de Ivan Karamazov – a questão não é decidida primeiramente no plano ético, tão-pouco no plano escatológico –, mas de me reconhecer nos termos de um enraizamento ou de um desenraizamento que seriam a base ontológica a partir da qual se fundaria a minha relação com o meu ser e com o ser do mundo, para recuperar, ainda que deformada, uma lição de Simone Weil.

Ora, precisamente esse enraizamento do ser em Deus é para mim uma coisa ininteligível. Não disponho de meios para conceber o que seria esse outro eu capaz dessa identificação com o divino, em que é que consistiria esse enraizamento e que outra vida dele resultaria. Sei, no entanto, com Raul Brandão, que seria «outro homem completamente diferente». E sei também que esse outro homem não existe em mim senão como apelo a que seja, e que esse apelo, esse vago acenar ao longe, esse horizonte de si mesmo para que o homem sempre tende e onde sempre se espelha para reflectir o sorvedouro do seu próprio olhar, é ao mesmo tempo a notícia e a fonte do meu desenraizamento. Não é tanto na descoberta que faço de que Deus não existe que apareço a mim mesmo como um ser desenraizado, mas antes por me saber desenraizado desde o princípio que não descubro Deus em mim.

Que o desenraizamento de Deus é um dado original do ser humano é evidente se pensarmos que ninguém ama a seu Deus antes que Este lhe seja revelado. Somos essencialmente incompletude. O que nos caracteriza enquanto humanos é a consciência atordoante dessa incompletude que nos faz virar para fora de nós em busca do que nos complete e justifique. Somos atirados para o mundo para nele nos realizarmos, e o limite a que aspiramos é o da bem-aventurança em que existiríamos já realizados. É o apelo dessa bem-aventurança sem esperança que perseguimos, uns através de subterfúgios com que iludem o abismo que reflectem no espelho, buscando redenção nas coisas terrenas, glória, fama, dinheiro ou apenas o último bem de consumo, imersos no estribilho do mundo; outros aceitando a impossibilidade de tudo, vivendo a sua incompletude como uma chaga que aprendem a estimar como seu refúgio e seu refrigério, um lago de sangue à beira do qual se sentam a cismar, resignados e convictos; outros, mais temerários, sacrificando tudo à voragem da sua fome, aceitando tudo e tudo acolhendo no precipício do seu coração, tudo recebendo no seu alforge, tanto mais vazio quanto mais cheio; e os outros, os cavaleiros da fé, na feliz formulação de Kierkegaard, os que foram capazes de realizar o movimento paradoxal da fé, que tudo aceitam na sua incompletude, que tudo sacrificam à voragem da sua fome, e que mesmo assim têm a audácia de esperar o impossível: que Deus quebre o selo do seu silêncio e diga o seu nome, e que o seu nome seja a sua secreta palavra de silêncio. Então o Verbo coincidirá com a escuta e Deus resgatará ao mesmo tempo a faca que Abraão empunha e o pescoço fremente de Isaac. Então o sacrifício estará consumado e a vítima e o algoz estarão salvos. Então o ser enraizar-se-ia e o rumor das raízes a latejarem sob a terra seria um rumor que embala.

Como Kierkegaard, aliás, Johannes De Silentio, também eu admiro os cavaleiros da fé e a sua figura modelar, Abraão, mas como para ele, também para mim eles me são «ininteligíveis e apenas posso admirá-los»[2]. Também com ele acredito que «A história celebrará os grandes homens, mas cada um foi grande pelo objecto da sua esperança: um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas – mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior»[3]. A medida da nossa esperança é a medida da nossa grandeza, e quem espera em Deus é o maior de todos. Mas e quem desespera sem Deus? Quem desespera sem grandeza e sem Isaac? Ainda Kierkegaard: «só o angustiado encontra repouso, só aquele que desce aos infernos salva a bem-amada, só quem empunha a faca recebe Isaac»[4]. E que acontece àqueles que descem aos infernos e não salvam a bem-amada e empunham a faca e não recebem Isaac? O que acontece àqueles a quem Deus envolveu nas suas brumas e no seu silêncio e a quem escondeu o seu rosto? Não tiveram eles fé suficiente?

Pensar o silêncio de Deus no século XXI é lembrar-nos de todas as vítimas de todas as guerras e de todas as fomes e de todos os agravos e de todas as ofensas, e é em particular lembrar-nos das vítimas do Holocausto. Podemos nós lançar-lhes a acusação de que não tiveram fé suficiente, ou, pelo contrário, devemos antes lançar a acusação sobre o silêncio de Deus nas horas de agonia nas câmaras de gás?

Alvitrei, no preâmbulo desta exposição, que a questão do silêncio de Deus é uma questão traiçoeira para um descrente. É verdade que o silêncio pressupõe ausência de som, mas tenho presente os ensinamentos de Jean-Paul Sartre, quando lembra, em O Ser e o Nada, que «a ausência define-se como um modo de ser da realidade-humana [e, neste caso, da realidade-divina] relativamente aos lugares e sítios [ou sons, acrescento eu] que ela própria determinou pela sua presença”[5]. A ausência de som e, logo, de sentido, só se torna manifesta porque uma presença de sentido foi antes o modo de ser do que agora é ausência? Não escutamos Deus porque Deus nunca falou ou porque Deus deixou de falar? «Em particular, diz ainda Sartre a este propósito, a ausência pressupõe a conservação da existência concreta de [outrem]: a morte não é uma ausência. Sendo assim, a distância de [mim] e [outrem] não altera em nada o facto fundamental da [nossa] presença recíproca»[6]. Se Deus falou, se Deus foi Verbo encarnado, Deus fala ainda e o seu silêncio é o seu modo de se expressar. Nesse caso, o seu silêncio seria pleno de sentido e nós apreenderíamos a palavra divina através da própria substância que a nega. O movimento que nos levaria a superar este absurdo é o que Kierkegaard chamou o movimento paradoxal da fé.

Mas para um descrente como eu, para alguém que só pode admirar Abraão, seguir-lhe os passos de perto, mas nunca habitar o seu pensamento, como entender este silêncio que seria de Deus se Deus existisse e que, não existindo, é apenas silêncio sem rosto por trás a perscrutar? Pessoalmente, não posso entendê-lo senão como afronta, como elemento instigador, como apelo a que fale, a que o interpele e o torne redundante, combatendo a sua impassibilidade com as minhas injúrias. O silêncio não é, mas deveria ser de Deus. E é só essa a reivindicação que podemos fazer. Não é outra coisa o que procuro quando de vez em quando, muito de longe em longe, escrevo um poema.

«O que fica, porém, instituem-no os poetas», dizia Hölderlin, o poeta louco alemão. E Heidegger comentava: «O que fica é o ente, e é-o pelo seu ser. O poeta é o que institui o Ser. (…) Se este instituir, enquanto poesia, for um dizer, isso significa simultaneamente: transpor o projecto para a palavra – colocá-lo no ser-aí de um povo como dizer (Sager) e dito (Gesagtes), como fábula (Die Sage) e assim colocar esse ser-aí pela primeira vez de pé, fundá-lo»[7]. Não estou seguro de que seja o poeta a fundar o Ser. Talvez, sem dúvida, o ser de um povo, como aconteceu com o nosso Camões, como aconteceu com Cervantes no que respeita ao ser do povo espanhol, como aconteceu com os inexcedíveis poetas que escreveram a Bíblia. Mas fundar o ser de um povo não é fundar o ser do Ser. Esse funda-o Deus, tê-lo-ia fundado Deus. Ao poeta cabe advertir essa fundação e protestar por se tratar de uma fundação sem fundamento. Algo como um esbracejar de náufrago, responder-me-ão. E eu anuirei. Um esbracejar que afunda mais do que salva. Mas é no lançar de mãos que assenta o impulso mais básico do ser humano, que assim aspira a mais do que alcança, que assim se alcandora e projecta através do rogo, da súplica, da blasfémia e da censura.

Recordo-me sempre destes versos de Antonio Gamoneda: «Se falas a um deus, quando responde, / vem a morte por correspondência»[8]. Esta seria uma bela maneira de morrer. Mas Deus não responde nunca, e o que vem por correspondência é apenas a afronta do seu silêncio instigando a nova réplica e à denúncia da insuficiência dos deuses. É essa mesma denúncia que a pensadora espanhola María Zambrano diz caber aos filósofos e aos tragediógrafos gregos: «Tal como o filho que se separa do pai e luta com ele e, no entanto, não poderia ter existido sem ele, assim o pensamento filosófico e a afirmação da pessoa humana contida na tragédia denuncia a insuficiência dos deuses, e entra mesmo em conflito com eles»[9]. E aos poetas, herdeiros da tragédia, não lhes cabe outra coisa senão insistir sem esperança na mesma denúncia, porque a denúncia é a transcendência possível da nossa condição, que é só o aspirar a sê-la. A poesia, disse-o noutro lado e agora repito-o, é a linguagem que utilizamos para falar aos deuses, não aquela com que eles nos respondem. A poesia não comunica o incomunicável, mas comunica-se com o incomunicável.

O silêncio de Deus é, pois, o campo onde germina o poema, aquilo a que vulgarmente chamamos a folha em branco; e a nossa angústia ante a folha em branco é a nossa angústia ante o silêncio de Deus. É por isso que não posso concordar com a assunção de Theodor Adorno de que não seria possível escrever poemas depois de Auschwitz. Pois quanto mais denso é o silêncio, mais pungente a nossa necessidade de o confrontar. E ao fazermos-lhe frente, que fazemos nós senão alimentá-lo com as nossas esperanças, enchê-lo até rebentar com o eco das promessas que exigimos que nos faça? Até que se cale o eco e nos calemos nós, e tudo seja redimido no silêncio da desaparição.

María Zambrano fala ainda da «vida de cada homem que não é nem pretende ser filósofo, que vive simplesmente a ausência de Deus. E nesse viver sem Deus ainda se distingue a simples aceitação quase inconsciente desse impulso, dessa violência, dessa estranha esperança que resume a realização do humano, a promessa final da nossa história sobre a terra, no desaparecimento total da consciência de Deus»[10]. Gosto de pensar que também em mim, descrente como sou, se distingue ainda essa «estranha esperança que resume a realização do humano».


REFERÊNCIAS

Brandão, Raul, Húmus, Lisboa, Bertrand Editores, 2011.
Heidegger, Martin, Hinos de Hölderlin, Lisboa, Instituto Piaget, 2004.
Kierkegaard, Sören, Temor e Tremor (3.ª Ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 1998.
Gamoneda, Antonio, Oração Fria, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.
Sartre, Jean-Paul, O Ser e o Nada, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993.
Zambrano, María, O Homem e o Divino, Lisboa, Relógio d’Água, 1995.


[1] Brandão, Raul, Húmus, p. 69.
[2] Kierkegaard, Temor e Tremor, p. 137.
[3] Ibidem, p. 30.
[4] Ibidem, p. 39.
[5] Sartre, O Ser e o Nada, p. 288.
[6] Ibidem, p. 289.
[7] Heidegger, Hinos de Hölderlin, p. 202.
[8] Gamoneda, Oração Fria, p. 33.
[9] Zambrano, O Homem e o Divino, p. 54.
[10] Ibidem, p. 118.