quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Antologia Clepsydra

Acaba de sair, pela editora Coisas de Ler, uma antologia de poesia, organizada pela Gisela Ramos Rosa, na qual participo com dois poemas e duas traduções de outros tantos poemas do poeta espanhol Rafael-José Díaz. Eis a versão corrigida de um dos meus poemas:



Procedia-se à transumância:
eram os tempos pobres da lezíria.

Mudávamos de pasto,
tínhamos sido vistos
em todos os campos
manchados por uma rendição.

domingo, 17 de agosto de 2014

Saint-John Perse (V)


VI


«...Aquele que erra a meio da noite nas galerias de pedra para avaliar os títulos de propriedade de um belo cometa; aquele que, entre duas guerras, vigia a pureza de grandes lentes de cristal; aquele que se levanta antes do dia para limpar as nascentes e põe termo a grandes epidemias; aquele que aplica laca em alto mar com as suas filhas e as suas noras, e já bastava a cinza da terra[1]...

«Aquele que elogia a demência nos grandes hospícios de gesso azul, e é Domingo nos campos de centeio, à hora da grande cegueira; aquele que sobe aos órgãos solitários à chegada dos exércitos; aquele que sonha com estranhas latomias, e passa um pouco do meio-dia, à hora de grande viuvez; aquele que, sob o vento de uma ilha rasa, desperta no meio do mar com o perfume árido de uma pequena perpétua das areias; aquele que observa nos portos os braços das mulheres de outra raça, e há um sabor a vetiver no perfume de axila da noite rasa, e passa um pouco da meia-noite, à hora de grande opacidade; aquele cuja respiração se une à respiração do mar enquanto dorme, e na mudança da maré, eis que se volta na cama como um barco a virar de bordo...

«Aquele que pinta uma conhecença[2] na frente dos mais altos promontórios, aquele que assinala com uma cruz branca a face dos recifes; aquele que lava com um leite pobre as grandes casamatas de sombra ao pé dos semáforos, e é um lugar de cinerárias e de entulho para deleite do sábio; aquele que durante a época das chuvas vai viver com o pessoal de pilotagem e de cabotagem – na casa do guardião de um templo morto no cabo da península (e está sobre um espigão de pedra azul-parda, ou sobre a mesa alta de grés vermelho); aquele que aprisiona sobre os mapas a rota fechada dos ciclones; para quem se iluminam nas noites de inverno as grandes pistas siderais; ou que contesta em sonhos muitas outras leis de transumância e de derivação; aquele que procura, com a ponta da sonda, a argila vermelha dos grandes fundos para modelar o rosto com que sonha; aquele que se oferece nos portos para calibrar as bússolas das embarcações de recreio...

«Aquele que caminha pela terra à procura dos grandes pastos; que dá a sua opinião, durante a viagem, acerca do tratamento de uma velha árvore; aquele que sobe às torres de ferro, depois da tempestade, para dispersar esse cheiro a crepe escuro dos fogos de sarça pela floresta; aquele que vigia, em lugares estéreis, a saída das grandes linhas telegráficas; que conhece o abrigo e o estribo de aportamento dos cabos submarinos; que, debaixo da cidade, num lugar de ossuários e de esgotos (e são a própria crosta descascada da terra), cuida dos instrumentos de leitura de puros sismos...

«Aquele que é responsável, em tempos de invasão, pelo regime das águas, e que inspecciona os grandes vasos filtrantes desgastados pelas núpcias das efémeras; aquele que, atrás das serralharias de ouro verde, defende dos motins as grandes estufas fétidas do Jardim Botânico; as grandes Casas da Moeda, das Longitudes e do Tabaco; e a Arrecadação dos Faróis, onde jazem as fábulas e as lanternas; aquele que, em tempos de insurreição, faz a ronda pelos grandes halls onde se esboroam, sob o vidro, as panóplias de bichos-folha e de vanessas; e ilumina com a sua candeia as belas gamelas de lápis-lazúli, onde, friável, a princesa de osso cravejada de ouro desce o curso dos séculos com os seus cabelos de sisal; aquele que defende da passagem dos exércitos um híbrido raríssimo de roseira brava dos Himalaias; aquele que financia do próprio bolso, aquando das grandes bancarrotas do Estado, o luxo fosco das coudelarias, das grandes coudelarias de tijolo fulvo sob a folhagem, como roseirais de rosas vermelhas sob o arrulhos da tempestade, como belos gineceus cheios de príncipes selvagens, de escuridão, de incenso e de substância varonil...

«Aquele que, em tempos de crise, é responsável pela guarda dos altos paquetes confiscados nos meandros de um rio cor de iodo e de estrume (e sob o limbo dos vitrais, nos grandes salões toldados de olvido, há uma luz de agave até ao fim dos tempos e para sempre vigilante no mar); aquele que vagabundeia com os maltrapilhos pelos estaleiros e pelos depósitos abandonados pela multidão depois do lançamento de um grande casco que demorou três anos a construir; aquele que tem por profissão a consignação dos navios; e aquele que um dia descobre o perfume da sua alma no cavername de um veleiro novo; aquele que monta a guarda ao equinócio na muralha das docas, no alto pente sonoro das grandes barragens da montanha e nas grandes eclusas oceânicas; aquele que sente que se exala subitamente todo o hálito incurável deste mundo no relento de grandes silos e entrepostos de víveres coloniais, lá onde a especiaria e o bago verde se dilatam com as luas de inverno como a criação no seu leito bafiento; aquele que decreta o encerramento dos grandes congressos de orografia, de climatologia, e é a hora de visitar o Arboreto e o Aquário e o bairro de prostituição, as lapidarias de pedras preciosas e os adros dos grandes convulsionários...

«Aquele que abre uma conta no banco para as investigações do espírito; aquele que entra na arena da sua nova obra cheio de entusiasmo e durante três dias ninguém a não ser a sua mãe vigia o seu silêncio, ninguém a não ser a mais velha das criadas tem acesso aos seus aposentos; aquele que conduz o seu cavalo às nascentes sem que ele próprio mate a sede; aquele que sonha nas selarias com um perfume mais ardente que o da cera; aquele, como Babur[3], que entre duas grandes acções viris veste a túnica do poeta para reverenciar a frontaria de um belo terraço; aquele que se distrai durante a consagração de uma nave, e há jarros no tímpano, como orelhas, murados para a acústica; aquele que, em terra de mão-morta, deixa como herança o último cativeiro de garças-reais, juntamente belas obras sobre montaria e falcoaria; aquele que negoceia na cidade três grandes livros: almagestos, portulanos e bestiários; que se interessa pelos acidentes de fonética, pela aliteração dos signos e pelas grandes erosões da linguagem; que participa nos grandes debates de semântica; que é uma autoridade nas matemáticas aplicadas e se compraz com a suputação das datas para o calendário dos feriados móveis (a proporção áurea, a indicção romana, a epacta e as grandes cartas dominicais); aquele que decide a hierarquia das grandes agências da linguagem; aquele a quem são reveladas, num lugar muito elevado, as grandes pedras lustradas pela insistência da chama...

«Esses são príncipes do exílio e não precisam do meu canto.»



Estrangeiro, em todas as praias deste mundo, sem audiência nem testemunha, encosta ao ouvido do Poente uma concha sem memória:

Hóspede precário na orla das nossas cidades, jamais franquearás o umbral dos Lloyds[4], onde a tua palavra não tem valor e o teu ouro não tem título...

«Habitarei o meu nome», foi a tua resposta aos questionários do porto. E sobre as mesas do cambista, nada que não seja dúbio tens para apresentar,

Como essas grandes moedas de ferro exumadas pelo relâmpago.

Saint-John Perse, Exil
- trad. minha





[1] O autor refere-se aos laqueadores chineses, forçados a exercerem o seu ofício no mar para evitarem as poeiras que o vento arrastava em terra. Sobre o assunto, escreve a Joseph Conrad, em carta de 26 de Fevereiro de 1921:
«As últimas grandes famílias de laqueadores chineses odiavam ter de viver no mar, ao largo de Petchili, para se protegerem das poeiras do "vento amarelo". (Última servidão imposta sobre o mar pelo habitat terrestre.)»

[2] Termo da terminologia náutica que designa cada um dos acidentes costeiros registados nas cartas de marear pelos quais se guiam os navegantes. Estes acidentes incluem qualquer género de elevações, como rochedos, faróis, torres de igrejas ou outras construções.

[3] Zāhir ud-Dīn Mohammad (1483-1530), Imperador muçulmano da Ásia Central que fundou a dinastia Mogol da Índia.


[4] Famosa família de banqueiros ingleses cujo percursor fundou, em 1765, aquele que é hoje conhecido por Lloyds Bank

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Texto de Pablo Javier Pérez López sobre Oração Fria

Oração Fria de Antonio Gamoneda
Selecção, tradução, introdução e posfácio de João Moita. Assírio & Alvim, 2013.


[Texto originalmente publicado na Enfermaria 6]

A arte de traduzir é, simplesmente, uma das mais elevadas e secretas. Poucos humanos conseguem levar poemas para uma outra língua com essa estranha e árdua fidelidade que reproduz a ebriedade, o ritmo, e o pensar cosido à música da vida da qual nasce o poema. Mais difícil ainda frente ao sentir popular, é fazer viajar a poesia para uma língua aparentemente familiar ou próxima. Mudar, verbo escolhido por Helberto Helder para este facto sagrado que sempre convoca a apropriação de outra voz e a recriação oral e escrita do poema, um verbo que, Gamoneda aceitou e recebeu com gosto. Sempre tem que ser um poeta a mudar a voz de outro poeta e sempre que isto acontece nota-se logo a partir do início da leitura.
E é neste caso, o labor de João Moita que atesta da validade de todas estas intuições: não só a escolha de poemas de Moita é feliz como a tradução aparentemente mais fiel e menos mudada parece apontar uma facilidade de trabalho que talvez na verdade não exista. Talvez por uma das qualidades essenciais da poesia deste autor espanhol ser a própria musicalidade e a simplicidade do verso, facilite e até explique em grande medida a magnífica e bem-sucedida antologia portuguesa do autor.
Como dizia, a apresentação da vida e da obra do autor feitas pelo antologista são muito pertinentes e oportunas para o leitor português. A antologia que tem como base uma outra recolha aparentemente definitiva feita pelo autor (Esta luz. Poesía reunida (1947-2004), Galaxia Gutenberg, 2004) é uma boa oportunidade para estabelecer um diálogo panorâmico com esta voz imprescindível pela autenticidade da sua voz ímpar, e onde a musicalidade e o pensar poético se encontram absolutamente fundidos.
É preciso notar também que a antologia efectuada por João Moita acrescenta cinco poemas presentes no último livro, até ao momento, de Antonio Gamoneda: Canción Errónea. Facto que considero deveras importante por se tratar de um livro que no meu entender supõe um píncaro essencial da obra do autor, uma espécie de planalto a partir do qual a voz poética olha o passado e a ausência futura. A inclusão de alguns poemas deste livro facilita, melhora e acolhe uma necessária impregnação da obra do autor na perspectiva do tempo. Canción Errónea é um livro que supõe a maturidade total da voz e a sabedoria poética, onde alguns dos poemas fazem arrepiar pela profundidade e clareza da voz na perspectiva deste tempo ou desta morte vivida que é sempre a poesia: [...]Amo este corpo velho e a substância/da sua miséria clínica. /O esquecimento / dissolve a matéria pensante  /diante dos grandes vidros / da mentira. /Já /tudo está dirimido. / Não há causa em mim. Em mim não há /mais que cansaço e /um extravio antigo: /Ir /Da inexistência /à inexistência. /É /um sonho. /um sonho vazio /mas acontece. /Eu amo /Tudo quanto cri /vivente em mim. /Amei as grandes /mãos da minha mãe e /aquele metal antigo /dos seus olhos e aquele /cansaço cheio de luz /e de frio. /Desprezo /a eternidade. /Vivi /e não sei porquê. /Agora hei-de amar a minha própria morte /e não sei morrer. /Que equívoco.
Poética vital, poesia vital que intensifica a vida. Assunção do mistério, diálogo com o invisível, reconhecimento do rosto na memória, consciência e afirmação da presença na ausência futura, vivência do corpo informe do símbolo, criação da beleza no impossível, são elementos essenciais de uma poética que resulta já imprescindível no nosso confuso tempo de poéticas barrocas, instranscendentes, superficiais e pacatas, cheias de um sentir quotidiano situado fora da imanência do sagrado que a vida impõe. Só na humildade, na aceitação profunda do símbolo poético pode nascer uma poesia autêntica e intemporal, onde nenhuma palavra é decorativa senão essencial, palabra esencial en el tiempo, definição da poesia de Antonio Machado que bem honra a escrita de Antonio Gamoneda. Quem queira penetrar no segredo da poesia que foge do acidental, quem queira fugir da poesia que nasce da experiencia passageira e intrascendente, acidental, deverá ler estes versos.
Estamos face a um pensar poético que nasce da coragem de querer a beleza, de conquistar a beleza que sabe que A beleza não é /um lugar aonde os / cobardes vão parar. Um pensamento poético que renuncia ao pensar que condena à inexistência na dor da lucidez, esse lugar tão longínquo da verdadeira luz (Vejo a vida no centro da luz; já sei / que a beleza não precisa ser pensada) e que funde absolutamente a vida e a poesia até fazer do pensamento, música, (Agora é música meu pensamento) que esconde uma sabedoria não pensada, mas sim revelada. A voz deste poeta nota-se autêntica desde o início da leitura quando sentimos a companhia e o silêncio, a voz do poema e do poeta que está dentro e fora do nosso coração. Um pensar poético que não renuncia ao mistério, que se funda no mistério da nossa própria existência mas ama profundamente o mundo: Sei que o único canto, /o único digno dos cantos antigos, /a única poesia, /e a que cala e ainda ama este mundo, /esta solidão que enlouquece e despoja.
Uma poesia que nasce do imenso sofrimento (Não é bom que haja tanto sofrimento) que é inevitável no verdadeiro poeta mas que ao mesmo tempo constitui uma sabedoria poética baseada na ausência de medo e esperança (Não tenho medo nem esperança. De um hotel exterior ao destino vejo uma praia negra e, ao longe, as grandes pálpebras de uma cidade cuja dor não me diz respeito.Venho do metileno e do amor: tive frio debaixo dos tubos da morte. Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.), onde a ebriedade da melancolia nasce duma memória maldita e amarela e cheia de esquecimento. Poesia que se salva na errância absurda de ser onde nasce e agoniza o nosso coração. (Vamos/ do visível ao invisível/ Nessa errância descansa o nosso coração. [...] És a minha doença e tu salvas-me).
Mas há outro elemento essencial da poética de Gamoneda que está também bem presente nesta antologia portuguesa. A poesia que o leitor pode encontrar neste livro é uma poesia feita de 'revelação', consciência poética do véu, poderiamos dizer. “En lo desconocido, en lo aún no nombrado, reside la causa del lenguaje creador, del lenguaje de revelación”, costuma afirmar Gamoneda. No fim, a poesia será neste poetizar apresentada como 'dando ser ao ser'. “É o desafio de dar ser ao ser” tal como lemos no posfácio. E essa revelação acontece também na linguagem concebida como esquecimento:  “O esquecimento como atenuador dos significados e, portanto, das convenções [...] na iminência de ultrapassar a charada da linguagem. E portanto de a recomeçar”, escreve igualmente João Moita nesse texto final. Transmutação da dor e da morte em prazer e liberdade: Eis aqui a busca essencial desta poética.
O que também podemos ler nesta versão portuguesa de João Moita é uma poética profundamente invulgar que não se pode colocar no seio de geração nenhuma. Trata-se de uma poesia onde a candura, de que falávamos a início, mostra o ritmo de uma memória que reflecte dentro da musicalidade do próprio tempo habitado, onde a memória, ainda que ferida de morte pelo sofrimento, se enche de coragem para a criação e contemplação serena da beleza ainda no frio da morte contemplada, o frio de quem conhece a pele de um rosto ou um poema verdadeiro, de quem guarda em segredo o calor autêntico da vida.
O título desta antologia justifica-se em termos gerais pois descreve com clareza e verdade mas talvez possa levar ao engano o leitor pela proximidade com o Livro do Frio, publicado já há 15 anos. Existem algumas gralhas nos títulos castelhanos que  maculam levemente o prólogo mas estas considerações nada mudam a importância e qualidade do trabalho efectuado nesta nova tradução. No fim de contas, o livro resulta imprescindível para aqueles leitores que estão próximos do pensar poético e da poesia que sem ser intelectual pensa no ritmo da própria vida. Embora alguns livros de Antonio Gamoneda tenham sido traduzidos já para português como Livro do frio, (trad. José Bento, Assírio & Alvim, 1999), Ardem as perdas (trad. de Jorge Melícias, Quasi, 2004) e Descrição da mentira, (trad. de Vasco Gato, Quasi, 2007) este livro parece configurar-se como a porta de entrada mais pertinente à obra do autor espanhol num sentido mais abrangente. Ao mesmo tempo, assinala, talvez, a necessidade de uma tradução completa que permita um diálogo mais profundo com as poéticas portuguesas  pelas quais o autor espanhol tem declarado constantemente o seu respeito mais genuíno. Dito por outras palavras, e ao acabar a leitura, o leitor fica com a necessidade de conhecer mais e melhor a obra do poeta.
Pablo Javier Pérez López

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Carderno 2 - Enfermaria 6


Amadeu Baptista | Andreia C. Faria | Catarina Santiago Costa | César Rina | Daniel Francoy | Dirceu Villa | Duarte D. Braga | Emanuel Amorim | Fernando Guerreiro | Isabel Milhanas Machado | João Miguel Henriques | João Moita | José Manuel Teixeira da Silva | Luís Ene | Manuel A. Domingos | Miguel Cardoso | Nuno Brito | Patrícia Lino | Paulo Kellerman | Paulo Rodrigues Ferreira | Raquel Nobre Guerra | Rui Almeida | Samuel Filipe | Tatiana Faia | Victor Gonçalves | Victor Heringer | György Petri / João Miguel Henriques et al (trad.) | Nick Laird / Hugo Pinto Santos (trad.) | Salvatore Quasimodo / João Barcelos Coles (trad.) | Cassandra Jordão

Capa: João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, Junho de 2014, 124 pp.

6€
 
Uma versão impressa deste livro pode ser comprada na Fyodor Books ou enviando-nos a sua encomenda para enfermariaseis@gmail.com.

A Enfermaria 6 é uma plataforma editorial sem fins lucrativo. Todo o dinheiro resultante da venda dos exemplares será usado para financiar futuras publicações.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

terça-feira, 4 de março de 2014

Saint-John Perse (VI)


«Mas erguemos ainda os braços em honra do Mar. Na axila açafroada toda a especiaria e o sal da terra! – alto relevo da carne, modelado como uma virilha, e ainda essa oferenda da argila humana de onde irrompe a face inacabada de deus.
«No hemiciclo da Cidade, onde o mar é o palco, o arco tenso da multidão ainda nos sustém na sua corda. E tu que danças a dança da multidão, elevada fala dos nossos pais, ó Mar tribal na tua charneca, serás tu para nós mar sem resposta e sonho mais longínquo que o sonho da Sarmácia?
«A roda do drama gira na mó das Águas, esmagando a violeta negra e o heléboro nos sulcos ensanguentados da tarde. Cada vaga ergue para nós a sua máscara de acólito. E nós, erguendo os nossos braços ilustres, e voltando-nos ainda para o Mar, na nossa axila alimentando os focinhos ensanguentados da tarde,
«Por entre a multidão, em direcção ao Mar, nós nos movemos em multidão, com esse amplo movimento que emprestam à ondulação as nossas amplas ancas de camponesas – ah! mais telúricas que a plebe e que o trigo dos Reis!
«E também os nossos tornozelos estão pintados de açafrão, de múrice as nossas mãos em honra do Mar!»

Saint-John Perse, Amers, Estrofe-III-2
Tradução: João Moita

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Poesia e solidão



A poesia não se faz de correntes nem de contra-correntes[1]: a poesia faz-se de solidão. É em solidão que a escrevemos e em solidão que a habitamos. Ou melhor, investirmo-nos da sensibilidade poética é investirmo-nos da nossa solidão, inundarmos a mudez do mundo com o halo de uma autenticidade que nos pertence e que a ele reclamamos, por vezes, quando o que é excessivo em nós não encontra eco no silêncio fechado do que nos rodeia.
É comum, e talvez não despicienda, a noção de que a origem da poesia está historicamente associada ao aparecimento do culto religioso, esse elemento unificador das sociedades, mas também de confronto com as forças incoercíveis da natureza e com a inelutabilidade da vida. Creio, sobretudo, que o dado consumado de que morremos não é alheio à intrínseca necessidade que o ser humano experimenta de fazer a sua vida confluir para situações em que o sentimento estético actua como elemento redefinidor da existência, dando-lhe consciência da exiguidade e incomunicabilidade dos seus domínios, que no entanto se distendem e proporcionam algo semelhante a um alívio nessa distensão. Como disse a propósito da poesia de Antonio Gamoneda, a poesia dá-nos consciência da dimensão daquilo que entregamos à morte, ou seja, o nosso eu, opondo-o ao que sabemos que o extravasa porque, inacessível e inabitável, ainda assim se nos apresenta, mesmo que o não consigamos representar. Falo de Deus, o mais verdadeiro e mais vago dos conceitos.
A função litúrgica terá sido, pois, a função primordial da poesia, e se se pode dizer, embora seja discutível, que há poesia sem liturgia, o mesmo já não podemos dizer da afirmação inversa. Daí que, talvez, os melhores textos poéticos sejam aqueles que num dado momento histórico estiveram ligados ao culto ou – os meus preferidos – aqueles que na Antiguidade serviram para fazer a comunidade cultual comungar do sentido trágico da vida, o lugar privilegiado da experiência do absurdo que Camus define como «o desesperado confronto entre a interrogação humana e o silêncio do mundo».
A poesia é a linguagem que utilizamos para falar aos deuses, não aquela com que eles nos respondem. A poesia não comunica o incomunicável, mas comunica-se com o incomunicável. Ela não actua sobre o homem, ele é que actua através dela, libertando-se do seu excesso, fazendo-se enfrentar com o que o transcende e o que, por o transcender, lhe escapa. Falo do inominável. Todos nós temos perguntas que não sabemos formular, nenhum de nós está seguro de si ao ponto de não se interrogar acerca da sua contingência. Senão, porque escreveríamos ainda? Que a poesia o faça através de uma técnica e de uma tradição pouco acrescenta, a meu ver, ao problema, a não ser, talvez, pelo facto de a tornar susceptível de contrafacção. A história da literatura bem pode traçar o esquema evolutivo do fenómeno poético e identificar os elos de ligação entre cada uma das unidades de significação, conjugando-as em períodos, correntes e contra-correntes mais ou menos homogéneas, mais ou menos estáveis, mais ou menos emancipadas em relação às outras, mas jamais poderá manejar uma dessas correntes sem que os elos se rompam num processo virulento de auto-exclusão. Não há autenticidade sem exclusividade. Parece ser isso que Adorno tenta indiciar quando afirma que «as normas estéticas (….) ficam atrás da vida concreta das obras de arte», esse mais que encontramos nas grandes obras e que não lhes advém da sua arquitectura nem da ideologia nem das tendências a que dão expressão.
Mas a poesia não se substitui àquilo que, por estar ausente, é a causa da privação. Não é a poesia que é divina, ela dirige-se ao divino sem ter alguma vez a presunção de se identificar com ele. Ou antes, segundo Paul Celan, a poesia é algo que «testemunha a presença do humano»; não a do divino, portanto. Ou ainda estes versos da Sophia: «És um deus que nunca tem um rosto // Por muito que eu te chame e te persiga.» A poesia não redime, mas ela manifesta inequivocamente a necessidade de redenção, e eu não conheço dignidade para o ser humano que não passe pela consciência insatisfeita da sua incompletude, pela reivindicação da sua liberdade, pela insatisfação que não se compraz consigo mesma. A poesia não redime, mas estamos muito mais perto de redenção quando a redenção se torna em nós uma exigência iniludível. A fome: eis todo o consolo para as nossas vidas, eis a nossa grande ligação ao mundo. Porque, no fundo, o que poderia eu desejar se eu me chegasse? «O poema é solitário. É solitário e vai a caminho», diz-nos ainda o poeta apátrida de língua alemã.
Raros, porém, mesmo quando lemos poesia, são os momentos em que experimentamos este aprofundamento da vida, esta autenticidade que toma posse e faz emblema da privação. Lembra Cioran que «muitos só se tornam líricos nos momentos decisivos da sua existência; para outros, tal só acontece nos instantes de agonia, quando todo o passado se actualiza e se desdobra sobre eles como uma torrente. Mas, na maioria dos casos, a explosão lírica surge na sequência de experiências essenciais, quando a agitação do fundo do ser atinge o seu paroxismo». A poesia propicia, pois, a eclosão destas experiências extremas em que o desespero e a perda se harmonizam com a consciência do desespero e da perda e nos devolvem à vida mais pacificados, por um lado, e mais inconformados, por outro. A vida, como a poesia, é feita destes paradoxos, mais do que de correntes.
É a estas situações-limite que a poesia dá forma, embora a ela não estejam limitadas. Este conceito, cunhado por Karl Jaspers, foi entre nós redefinido por Vergílio Ferreira como «aquelas [situações] que nada têm a marginá-las, as que se determinam por um impacto que nos suspende a respiração, as que sobem do real e nos instalam no imóvel espanto, no silêncio que nos estala todo o ser, na evidência da morte, na evidência da beleza, no aviso oblíquo da irrealidade». Régis Jolivet, num estudo sobre Jaspers, vai ainda mais longe, ao afirmar que «o pensamento passa das situações no mundo às situações-limite, da consciência empírica à consciência absoluta, da acção relativa e condicional à acção incondicionada». Creio que o lugar da poesia é bem este lugar da «acção incondicionada», do exercício da plena subjectividade, desta força que rompe correntes e que não se compraz na identificação com os fenómenos de contra-corrente. Convenhamos, tanto umas como as outras, mas mais as segundas, porque as contra-correntes são fenómenos essencialmente sincrónicos, relevam do espírito gregário tão avesso à poesia. Só na expectativa do contacto com esta tensão «sem nada a marginá-la» é que a poesia faz sentido, caso contrário, ela seria mero jogo para comprazimento das nossas habilidades linguísticas.
Mas a solidão de que falo nada tem a ver com a reclusão, pelo contrário. Vergílio Ferreira distinguia solidão do isolamento. Para ele, uma e outra não eram a mesma coisa. «Porque o isolamento», diz ele, «implica um corte com os outros; [mas] a solidão implica apenas que toda a voz que a exprima não é puramente uma voz da rua, mas uma voz que ressoa no silêncio final, uma voz que fala do mais fundo de si, que está certa entre os homens como em face do homem só. O isolamento corta com os homens: a solidão não corta com o homem. A voz da solidão difere da voz fácil da fraternidade fácil em ser mais profunda e em estar prevenida.» O isolamento veda-nos o outro, a solidão, a substância em que os poemas medram, leva-nos ao encontro do irremediavelmente Outro, esse outro de nós que é a sombra à nossa frente para a qual caminhamos.
Quero terminar citando o conselho que Rilke dá ao jovem poeta – eu, afinal, sou um jovem poeta – e que me parece resumir aquilo que estou a tentar dizer. Diz ele: «temos de aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso e o mais inexplicável.»


[1] Texto lido na 15ª edição das Correntes d’Escritas, Póvoa de Varzim, a 21 de Fevereiro de 2014, numa mesa redonda subordinada ao tema De correntes e cont[r]a-correntes se faz a poesia.