segunda-feira, 22 de abril de 2019

«Perceber a morte e julgá-la bem» – Homenagem ao poeta António Osório


«Perceber a morte e julgá-la bem» –
Homenagem ao poeta António Osório


Se ao nascermos todos temos por garantida a equitativa distribuição da morte, essa derradeira niveladora, não é menos verdade que há raros seres cuja existência é desde cedo marcada pelo signo do privilégio, e que por isso partem com um avanço tantas vezes irrecuperável para quem deles não beneficia para os reptos da vida. Há, sem dúvida – não seria honesto omiti-lo –, privilégios colectivos, que decorrem de contextos históricos e geográficos, dos quais todos nós nesta ponta do continente europeu, ou que alguns de nós, com determinado tom de pele ou de determinado género, beneficiamos, e há os privilégios individuais, fruto da estratificação da sociedade, passados de geração em geração dentro das mesmas famílias. São os privilégios de classe. António Osório é – ele será o primeiro a admiti-lo – um desses privilegiados.
Para o que aqui nos ocupa, o privilégio económico por si só não produz nenhuma vantagem substancial, embora uma situação material desafogada possa contribuir e muito para o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, reduzindo a ansiedade que a luta pela subsistência acarreta, proporcionando as condições para a aquisição de competências diferenciadoras e criando disponibilidade para uma abertura ao mundo sem a qual toda a arte é estéril. Mas é de outro tipo a vantagem que, como poucos, António Osório soube respeitar e potenciar. Falo da vantagem que decorre de uma sólida formação iniciada na infância por uns pais que souberam e quiseram calibrar a sensibilidade do filho segundo os mais elevados padrões culturais, transmitindo-lhe o amor pela grande poesia e pelos valores que esta veicula, do acesso em primeira mão ao mundo da arte e ao círculo reservado dos seus cultores. Raros são os afortunados, mas muito mais raros são os que sabem honrar a sua sorte. O poeta António Osório, à semelhança, por exemplo, de Saint-John Perse, soube.
Não é, pois, por acaso que a poesia de ambos, embora diametralmente opostas no tom e nos recursos formais que convocam, como já Robert Bréchon assinalou[1], têm como denominador comum um desejo irrefreável de acolher e louvar, duas das palavras-chave destas poéticas tão díspares à chegada como próximas à partida, o que desde logo as singulariza num universo poético, como é o nosso, em grande medida herdeiro do romantismo, com a sua exacerbação do individualismo narcísico, e dos movimentos modernistas, com o seu estilhaçamento egóico (o «Je est un autre» rimbauldeano ou a heteronímia pessoana), ainda derivados daquele.
Osório teve a humildade e a hombridade de se conformar à responsabilidade que vem com o privilégio. Só a aceitação dessa responsabilidade explica que o poeta, ao contrário de tantos dos seus pares, acossados pela urgência de se afirmarem ou pela necessidade de reivindicarem para si um lugar que não lhes estava reservado mas de que se sentiam merecedores, tivesse hesitado tanto em publicar os poemas que ia produzindo com a paciência e a meticulosidade de quem se habituou a admirar a magnanimidade do que é grande e abstrato e a dignidade do que é pequeno e concreto, e não transige consigo, à luz dos exemplos que recebeu, nem se compraz, à custa dessa «vulcânica orquestração de pianíssimos» tão laboriosamente conquistada, com as honrarias mundanas, se não forem, antes de mais, um justo e merecido reconhecimento pela seriedade abnegada do seu zelo.
Sintomaticamente, é desse lento e necessário amadurecimento que nos dá conta o poema que abre o livro inaugural do poeta, emprestando-lhe o título e dando-lhe o mote que haveria de permanecer actual ao longo de um percurso que conta já quase meio século de actividade. Diz o poeta em «A Raiz Afectuosa»:

A Raiz Afectuosa

Com os anos
a pouco e pouco
a raiz afectuosa
penetrou
no fundo da terra
até chegar
ao mais pequeno
e mais antigo
veio de lágrimas.

Poema de uma economia vocabular espantosa, outra das marcas desta poesia, técnica que não se chega a dominar sem o concurso vigilante de um crivo moroso e equilibrado, ele combina desde logo, com esta «raiz afectuosa» que se alimenta neste «veio de lágrimas», dois dos elementos fundamentais desta poética: uma ubíqua valorização da estima e da afeição, atitude oposta à tão portuguesa autocomiseração pelas ofensas sofridas, reais ou imaginárias, e uma aguda consciência da morte e do sofrimento, próprios e alheios, que, mais uma vez contrariamente ao que a tradição nos habituou, opera uma valorização da vida em toda a sua extensão e enquanto tal.
Atitude que entre nós tem paralelo apenas em Vergílio Ferreira, embora mais dado à lamúria e ao queixume, e que este condensou na formulação lapidar que deu título a um dos seus mais belos romances, Alegria Breve: a da aceitação da vida tal como ela é, com as suas tragédias e os seus júbilos, a do reconhecimento pela oportunidade que foi concedida a cada um dos viventes de vir ao mundo ver como isto é, indubitavelmente preferível ao apagamento da não-existência e à ignorância que a si mesma se ignora. Há um poema de Décima Aurora (1982) que cristaliza esta atitude na perfeição e que não hesito em transcrever na íntegra:

Augúrio

Não antecipes a tristeza
de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.

Se no poema anterior tínhamos um veio subterrâneo e neste o consolo das lágrimas como intensificador da vida, a verdade é que, no seu conjunto, a poesia de António Osório é pouco dada à introspecção e às monotonias do claro-escuro. Os seus versos são cristalinos, deles dimana a leveza da luz mediterrânea, lisa, não granular, diáfano véu pousando sobre as coisas, as pessoas e os animais, transfigurando a dor em beleza por acção da compaixão, esse bálsamo que o egoísmo não segrega.
Não é, pois, uma poesia marcadamente subjectiva, a de António Osório. Não que nela o sujeito poético não compareça nem assuma a sua função de entidade enunciadora por excelência – não é frequente que o autor dê voz aos entes sobre os quais a sua atenção se detém, e se deles se compadece, o mesmo não é dizer que necessariamente com eles se identifica (veja-se os poemas «Senhora Rita» ou «Lamento do Cantoneiro», de A Ignorância da Morte (1978)) –, mas raramente fala de si, e quando o faz, é para reivindicar a probidade dos seus juízos e a rectidão da sua conduta, como no verso, invejável a todos os títulos, com que termina o poema «Amor de Si», de O Lugar do Amor (1981): «Oxalá eu possa tranquilizar os meus vermes.»
É quase como se o poeta, reconhecendo a dívida pelo privilégio de que acima falava, assumisse deliberadamente a missão de defender os desfavorecidos pela sorte, usando em seu benefício o seu talento de poeta, que «singulariza e distingue o que vê», como salientou Rosa Maria Martelo a propósito desta poesia[2], arrancando-os ao anonimato e à indistinção e conferindo-lhes uma individualidade que, mais não podendo, os dignifica. Aliás, o civil António Osório assumiu de facto esta missão, ao escolher a profissão – que era, de resto, a do seu pai – de advogado, termo que na sua origem latina significava, não se cansa o poeta de repetir, aquele que vem em auxílio de um acusado.
É, pois, com naturalidade que na sua poesia comparecem, nas palavras do poeta em texto que serve de introdução a Crónica da Fortuna (1997), «curadores, […] sectários, […] muitos animais, […] árvores, […] ofícios em extinção (como o de apanhador de ervas), […] ecologistas incómodos, meninos que se alegram num picadeiro […]», e assim sucessivamente. No fundo, tudo o que, pelo mero facto de existir, é digno de figurar na crónica do tempo, tudo o que está ameaçado, tudo o que é condenado ao silêncio, tudo o que está moribundo e é, assim, por obra e graça do discurso poético, como que embalsamado para memória futura, constituído acervo para antepor à vinda dos bárbaros, que com a sua efusão, o seu estrépito orgíaco, a sua cegueira punitiva, as suas soluções higiénicas, tudo ameaçam diluir num indistinto caldo sintético.
A morte virá certamente, e com ela o esquecimento. Mas como dizia António Osório na curta-metragem que acabámos de ver, é preciso compreender a morte para julgá-la bem. Todo o labor de uma vida são subsídios para essa compreensão. Quando a morte vier e saldar a vida em destino, para retomar a ideia de André Malraux, não é irrelevante aquilo que lhe vamos entregar, porque, e creio que essa é a grande lição que podemos retirar da poesia de António Osório, esse será o nosso testemunho para os que ficam e para os vindouros, e, se houvesse Deus, «Fortuna […] dos que poderiam apresentar-se limpamente diante [Dele]», dos «que não causam dano nem semeiam a culpa», para só citar duas passagens desse grande testamento que é «O Pão das Palavras».
Volto, para terminar, ao insigne verso do poema «Amor de Si»: «Oxalá eu possa tranquilizar os meus vermes.» Humilde intenção de quem não só diante de Deus, mas até dos mais desprezíveis dos seres se quer apresentar impoluto, para que ninguém lhe possa apontar o dedo e acusar de ingratidão, para que nenhum privilégio tenha ficado sem retribuição. Exemplar sem ser grandiloquente, incorruptível sem ser heróico, e sem pecado, além do pecado original de amar com a violência e a candura do amor.


[1] «A poesia de António Osório não é a grande orquestra de Claudel ou os grandes órgãos de Saint-John Perse, é antes uma música de câmara, discreta, quase silenciosa, interior.» Bréchon, Robert, in António Osório, Barca do Mundo – I, 1999 (citado em Osório, António, A Luz Fraterna, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 630).
[2] Martelo, Rosa Maria, A Forma Informe – leituras de poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 134.

Sem comentários: