quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Gamoneda (X)

A tua solidão é ávida. A tua palidez brota de ti e divide-se em longas medulas. À tua volta não vês mais do que a ti mesmo.

Como o animal que mastigou a sua placenta e como as galinhas que o rodeiam com olhos giratórios, de ambas as formas estás sujo em ti e ao teu redor.

Porque cospes dentro da tua alma? Mentes no depoimento. Eu no teu lugar mentiria mais docemente.

Se o teu coração pesasse nas suas insígnias, se a tua riqueza fosse o teu cansaço, aceitarias respirar, descansarias de ti mesmo.

Eu, nos manjares que antecedem a morte, encontro a minha lucidez. Não são mais lascivos que as tuas lágrimas.

Sinto a minha qualidade nua no seu interior. É líquida e hei-de fechar os olhos.

A aversão vagueia como um cão amarelo mas a minha nudez trabalha na piedade

e sobrevém como leite fervido.

Tu expandes fluxo de outra forma: cheiras a tua enfermidade noutros corpos. Ninguém virá com uma luz sobre as tuas chagas.

As tuas unhas são azuis sobre a mesma madeira que outros – os mais cansados – pulem cada crepúsculo, quando se lavam mortos nos pátios e se recebe a serenidade.

A minha nudez é líquida até reflectir os rostos dos suicidas e os mendigos dormem longos sonos com os seus ouvidos postos no meu ventre e porventura escutam a ira das suas mães mas dormem.

Eu no teu lugar mentiria mais docemente.

Antonio Gamoneda, Descripción de la mentira
- trad. minha

Sem comentários: