(Comunicação
lida no âmbito da mesa-redonda de poetas inserida no VI Colóquio Internacional
A Literatura Clássica ou Os Clássicos na Literatura, org. Centro de Estudos Clássicos da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Janeiro de 2022.)
À
Isabel Santiago
Sei precisar com
exactidão o ano do meu primeiro contacto com a literatura da Antiguidade
Clássica. Sei-o não porque tenha uma memória prodigiosa — os deuses não me
bafejaram com essa graça —, mas porque guardo desde então um documento datado
que mo atesta. Decorria o ano de 2002, eu era um adolescente de 17 anos a
arrastar a carcaça lânguida pelas salas frias da escola secundária da minha
terra, e uma professora digna desse nome — uma autêntica raridade —,
apercebendo-se de que o meu mau comportamento, a minha displicência e o meu
desinteresse generalizado não impediam o florescimento de uma paixão incomum
pela literatura, decidiu iniciar-me em leituras que ela esperava — e com razão
— que me pudessem ajudar naquela fase tão crítica da minha vida.
Recordo que um
dia me emprestou o seu exemplar de O Estrangeiro, de Albert Camus, e que
o impacto da estranheza dessa leitura foi tal que não pude descansar enquanto
não lesse O Mito de Sísifo, que eu esperava que me esclarecesse aquela
inquietante jornada daquela tão desconcertante personagem. Assim, tê-lo-ei
pedido à minha professora. Estaríamos em finais do segundo período, ela
ter-se-á esquecido de mo trazer, conjecturo agora, e ter-me-á dito que mo
traria no início das férias, para que eu o fosse levantar já não me lembro
onde. No dia combinado, dirigi-me ao local e perguntei à funcionária da escola se
a professora Isabel Santiago tinha deixado alguma coisa para mim. Em vez de O
Mito de Sísifo, tinha à minha espera uma tradução de Rei Édipo e um
bilhete que dizia o seguinte:
«João,
repensando o Camus, troquei-o por uma tragédia, Édipo. Camus fica para depois.
Aposto que é mais importante nesta fase, no meio de tanto senso comum tão pouco
esclarecido, que o João se confronte com gestos humanos de dignidade
inultrapassável. Para não se sentir a arrefecer num mundo desumano e
indiferente.»
Como podem
imaginar, aquela mensagem abalou-me. Era como se a minha professora tivesse
decifrado o meu coração. No meio do marasmo das vidas comezinhas e nunca
questionadas, havia, afinal, «gestos humanos de dignidade inultrapassável», e
eu podia encontrá-los — talvez só pudesse encontrá-los — nas tragédias gregas
escritas há mais de 2500 anos. E o gelo que crescia a toda a volta talvez
tivesse ali um antídoto infernal.
O que depois
descobri, para meu grande espanto, era um pouco mais complexo do que isso. É
que, a juntar aos «gestos de dignidade inultrapassável», ou não bem a juntar-se-lhes,
mas possibilitando-os, propiciando-os até, convivendo com eles numa relação de
continuidade, de dependência quase simbiótica, estavam actos monstruosos,
absolutamente terríficos e imperdoáveis segundo os nossos padrões morais. O
mais digno dos seres humanos era, ao mesmo tempo, o mais infame. Com isso,
naturalmente, eu era capaz de me identificar.
O crime mais
hediondo, a transgressão mais inconcebível eram cometidos com a naturalidade de
tudo o que acontece por não poder deixar de acontecer. O monstro era humano, e
o humano era monstruoso. Não podia conceber mais bela iniciação à simples e
irredutível verdade da vida: tão cega é a justiça como a injustiça. Tão injusta
é a fortuna como o seu revés. Tudo o que em consciência possamos louvar é, ao
mesmo tempo, merecedor do nosso mais altivo repúdio. Todo o bem tem um lastro
de maldade.
Curiosamente,
foi o livro na altura preterido que me ajudou a esclarecer todas estas intuições
que indefinidamente me espicaçavam ao ler as tragédias de Sófocles, Ésquilo e
Eurípides: Sísifo elevado por Camus a epítome do herói trágico. Havia que
imaginar Sísifo feliz, dizia o campeão do absurdo. Sísifo, espoliado do
atributo mais humano dos atributos, a esperança, devia ser feliz. Esta «felicidade
sem esperança», que vim a encontrar mais tarde em alguns dos autores que mais
me marcaram, como Antonio Gamoneda, Saint-John Perse ou Vergílio Ferreira,
passou a ser para mim não só a manifestação mais imediata do sentimento trágico
da vida, mas também, e sobretudo, o efeito estético por excelência e o meu
desígnio enquanto poeta.
No entanto,
ainda tinha de esclarecer de onde vinha esta felicidade de uma qualidade tão
especial que era capaz não só de sobreviver, como de prosperar num mundo isento
de esperança. Ou, pior ainda, que nele a vinha render. A chave parece estar no
que Camus diz sobre os motivos que levaram à punição de Sísifo. Argumenta ele
que foram o seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela
vida que o condenaram a arrastar eternamente a pedra do seu calvário,
acrescentando ainda esta frase enigmática: «não há destino que não se
transcenda pelo desespero». Tudo o que caía fora do domínio do humano, os
deuses e a morte, era rejeitado, votado a um desprezo inoperante, mas nem por
isso menos visceral. Sísifo terá, então, reivindicado aos deuses a autonomia do
humano, assumindo o seu suplício como condenação à medida do seu desespero. Nada
mais podendo esperar, era feliz. Tudo estava consumado. «Toda a alegria
silenciosa de Sísifo aqui reside», assegura Camus, «o seu destino
pertence-lhe.» (p. 126)
Essa é, para
mim, a grande lição da visão trágica grega, que se opõe diametralmente à visão
trágica cristã, com a sua assunção da culpa e a sua sede de redenção. O nosso
destino pertence-nos, não aos deuses: Édipo cega-se de livre vontade, Édipo
deseja o seu suplício, não para através dele se purificar, não para recuperar
as boas graças dos deuses, mas para que ele seja a marca indelével de um
destino que só a ele lhe pertence, que lhe é consubstancial. Reconhecendo-se
monstruoso, Édipo reivindica a sua monstruosidade, isto é, a sua humanidade, na
forma do desespero. Assume-o e não aceita uma vida em que este lhe seja
sonegado a título de recompensa. Édipo sente-se recompensado no seu desespero.
Porque só ao
herói trágico é permitido desesperar. O herói cristão, ou o seu sucedâneo, o
herói marxista, por exemplo, não desesperam, sob pena de perderem o ideal no
qual fundamentam a sua heroicidade. O herói trágico não tem ideal que o redima,
redime-se todo no seu desespero. A tragédia de Cristo foi refutada pela
ressurreição de Cristo. E é só por isso, a meu ver, que a tragédia grega é
superior ao Novo Testamento. Ao contrário de Édipo, Cristo não soube viver o
seu destino até ao fim. Para tanto, bastar-lhe-ia recusar-se a regressar. Parafraseando
George Steiner no seu célebre ensaio The Death of Tragedy, a verdadeira
tragédia só pode ter lugar quando a alma atormentada admite para si mesma que
já não há tempo para o perdão de Deus. É então que se lhe torna evidente que é
preciso ir até ao fim. É preciso que a desgraça seja consumada. O herói trágico,
aristocrático por definição, aspira sempre ao máximo, mesmo que esse máximo
redunde em excesso. E o excesso é que é trágico.
Assim, se alguma
influência da mundividência grega reconheço no que escrevo, ela só pode ser a da
assunção do conhecimento trágico tal como foi definido pela filósofa espanhola
María Zambrano em O Homem e o Divino: «O conhecimento que a tragédia
trazia», diz ela, «era simplesmente o conhecimento do homem. A reabsorção de
qualquer destino e também de qualquer falta, por maior que seja, na condição
humana.» (p. 195) O que faço nos meus poemas, ou que gostaria de fazer, é
reclamar uma vivência mais trágica, mais grega, para o meu fundo
judaico-cristão, confrontando o deus do perdão com a recusa do perdão, e
ostentando, assim, perante a sua opacidade, a ignomínia do aviltamento com cuja
remissão ele pretende salvar-nos, salvando-se apenas a si e às suas
prerrogativas. É preciso, em nome do desespero, assumir tragicamente o fardo da
perdição. E, como Camus, é preciso imaginar Sísifo feliz, couraçado pelas
provações dos deuses, que já nada podem contra ele, enquanto passeia pela trela
a sua pedra, que já nada, nem ninguém, lhe podem tirar. Sísifo é feliz porque é
Sísifo e porque tem uma pedra para se lembrar de quem é.
Termino, se me é
permitido, com a leitura de um poema que publiquei no meu livro de 2019, Uma
Pedra sobre a Boca, e que penso poder exemplificar o que acabo de dizer.
Trata-se de uma reformulação trágica, no sentido que tenho dado ao termo, do
episódio do Génesis em que Deus põe Abraão à prova, mandando-o acompanhar o seu
filho Isaac até ao monte Moriá, onde devia sacrificá-lo para fazer prova da sua
fé. No meu poema, no auge da agonia, quando Deus detém a mão de Abraão,
inclinado sobre o filho, e lhe aponta o cordeiro que deve sacrificar no seu
lugar, Abraão dirige-se a Jeová nos seguintes termos:
«Na garganta de
Isaac, sinto já avermelhar-se a minha faca —
serás tu,
Senhor, o sustento da minha culpa.
Como a
suportaria se a minha fé não fosse
maior do que tu?»
Nesta fé maior
do que Deus, encontro a essência do trágico.