sábado, 13 de setembro de 2025

Poesia (Rimbaud)

 


[...] Terá sido qualquer coisa como o conhecido epigrama de Nicarco: «Se me amas, odeias-me. E se me odeias, amas-me. / Ora, se não me odeias, amado, não me ames.» Teria sido a Musa? O Espírito Santo? O próprio Mefistófeles? Quem terá soprado tamanha injunção aos ouvidos tenros do pré-adolescente Rimbaud? Fosse quem fosse (ele chamou-lhe Beleza), o mito relata que acabou por sentá-la no colo. — E achá-la amarga. — E injuriá-la. É preciso ter amado muito para odiar tanto. Bem-aventurados os que amam até ao fim, pois eles se libertam da esperança — que consola, e que mente. Antes do grande e definitivo adeus à poesia — que ainda retumba, que ainda assombra os nossos poetas como uma confrangedora acusação de menoridade (quantos, nos nossos pesadelos, não sentimos aquele gordo indicador de camponês em riste sobre os nossos lábios?!) —, Rimbaud foi um poeta convencional (na idade em que muitos dos nossos jovens ainda mal aprenderam a balbuciar), igual, em tamanho, aos maiores do seu tempo (não poderia Victor Hugo ter escrito a «A Consoada dos Órfãos»?); depois, um poeta perverso, indócil e indisciplinado (há já quem não se lembre, mas, até há bem pouco tempo, a adolescência era assim); e, finalmente, um poeta visionário (a história é conhecida: chegaria à visão derradeira pelo desregramento de todos os sentidos). A que visão pretendia ele chegar? Nada menos do que à visão do que pudesse ser uma nova vida, diferente desta que temos e que, por mais espantosa que nos pareça, nunca nos basta. — Sabemos como é: nunca nada nos basta. — E a este não bastar, a esta carência, a esta falta, nós amamo-la com toda a sofreguidão do nosso ódio, e odiamo-la com todo o despropósito do nosso amor. E os que verdadeiramente o conseguem, já não suportam o gorgolejo do seu canto.


*


Porquê voltar a traduzir Rimbaud tão pouco tempo depois da primeira tentativa? Porque falhei. Fiz o melhor que soube e pude no tempo em que o fiz e nas circunstâncias em que me calhou fazê-lo. Mas não me satisfez. Então, muito simplesmente, impus-me a mim mesmo a oportunidade de uma redenção. Apetrechei-me de cartapácios, folhetos e pergaminhos, mapeei os ventos com a velha técnica do dedo molhado de saliva, fiz e desfiz os nós dos sapatos até calejar as mãos para o sebo ressequido do cordame, aparelhei e, quando senti que não podia adiar mais, desfraldei as velas e abati os rebocadores. Primeiro, peguei nos livros em prosa, que não me tinha calhado traduzir, e depois, no que sobrava: toda a obra em verso conhecida do poeta-adolescente, mais uns quantos apontamentos em prosa que não figuram nem em Uma Temporada no Inferno nem nas Iluminações. Excluí, avisadamente, os poemas em latim que a então criança escreveu em contexto escolar e que insistem em figurar neste tipo de compilações. Calha-me bem, porque não sei latim, mas também não me parece que sirvam para muito mais do que para nos fazer maravilhar com a precocidade de uma criança sobredotada entre as crianças sobredotadas. Com isto, o trabalho fica feito. Por agora. Consultei muitas traduções, em várias línguas e em várias versões das várias variantes do variado português. Não gostei de quase nenhuma, mesmo quando lhes invejava o engenho. Por exemplo, quando deparava com versões rimadas. Nesses casos, invariavelmente, encontrava um Rimbaud frouxo e exangue, muito pouco da sua rebarbativa verbosidade. Decidi manter a métrica — é essencial para entender a evolução desta poesia, do ritmo tradicional para o metro ímpar influenciado por Verlaine, e daí para o verso livre ou para o simples desleixo —, ignorar a rima, pela razão acima indicada, e procurar sempre soluções tão literais quanto possível. Dizer isto, como sempre neste tipo de explicações, é não dizer nada. Descrevemos uma pintura a alguém. Esse alguém vai ao museu, contempla a pintura e diz-nos: é verdade que corresponde ao que disseste, mas é outra coisa. As notas visam sobretudo contextualizar os poemas mais circunstanciais e chamar a atenção para particularidades do original francês que não são transponíveis para a nossa língua.

De resto, quem tiver paciência para fazer o cotejo, comprovará que as minhas versões anteriores divergem destas tanto quanto podem divergir duas traduções de duas pessoas diferentes em dois tempos diferentes. Nós mudamos a cada segundo, mas a vida permanece a mesma. Isto não vai lá com poesia.

 

João Moita

domingo, 1 de junho de 2025

Março

Março já vai bem avançado. Somos sugados não sei para que precipício. A nossa inacção não logra deter o mundo. Pelo contrário, sem sentirmos a vertigem, tolhidos de anemia, praticamente afásicos, nem damos pela aceleração. O Inverno teima em não ceder. Tem chovido o que deve e as abertas são as esperadas. A tristeza e a solidão alastram como metástases. Sou este despropósito. Gastei os sonhos e as aspirações. Perdi as obsessões. Despromovi as paixões. Sou um ser deflaccionado. Já nada me entusiasma e já nada espero. A inteligência regrediu, a memória minguou, o palato secou. Vulgarizei-me e não sei viver vulgarmente. Estou só e não quero ninguém. Nada nem ninguém. Amanhã é outro dia. Algo prossegue subterraneamente. Je est un autre.

sábado, 31 de maio de 2025

Escrever

Tão difícil escrever. As palavras vêm a conta-gotas, represadas. Como uma ampulheta de mil grãos de areia destinada a contabilizar a eternidade. Depois, um grão maior entope o mecanismo. Não quer sair. Agito, rodo, viro e reviro a ampulheta, mas o grão não sai. Os outros acumulam-se atrás, aguardam a sua vez, hesitam em adiantar-se, misturam-se, saem da ordem. Então pouso a ampulheta e desisto de medir o tempo. Por falta de tempo. — Pudesse abrir as comportas, deixar sair tudo de roldão e tudo estar certo e no seu devido lugar! Então ainda haveria tempo.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Farol

Arderam todas as fogueiras, consumiram-se todas as brasas, dispersaram-se todas as cinzas. Terra queimada, nenhum combustível. — E vagueia ainda esta ardência pelo mundo? Que podes inflamar? Que esperas dessa tua perpétua incineração? Deixa que se apague lentamente a tua chama.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

terça-feira, 27 de maio de 2025

Que Túmulo em Que Talhão (revisited)


Tive a felicidade de poder rever a minha vila com olhos virgens. Foi uma bênção e uma sagração. Depois, voltou-se-me a gastar. Mas, por uns meses, ela apareceu-me como no sétimo dia da Criação. Tudo era estranheza e sobressalto. Eu era eu sem o que lá tinha sido. Não um estrangeiro, mas um filho da terra acabado de nascer, atirado para o Paraíso com tudo o que lá reluzia ou chamuscava, sem conhecimento de outro lugar ou de outro tempo. A criança que fui era contemporânea do adulto que estava a ser. Plácida planície sem constrições, tudo aberto a perder de vista: ao fundo, a intuição de umas montanhas, Serra d’Aire, Serra da Estrela, os Pirenéus, os Himalaias. Céus altos e vastidão. Naquele cenário, como admitir ser compelido por uma ideia, uma paixão, uma qualquer adesão, uma qualquer autoridade? Sabendo que depois da distância há mais distância? Horizonte tão inacessível que convidava à inacção. Se tivesse esperança de alcançar, esta tolher-me-ia os pés, e então lembrar-me-ia de tudo e tudo perderia o encanto. Por uns meses, fui feliz na minha terra. E só depois o soube.


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Alegria

 

A alegria exalta e inebria. Como toda a embriaguez, aliena. Inaugura um movimento centrípeto que nos enclausura dentro de nós. Como a arte, intensifica a vida, mas apenas a vida larvar, a que vai de nós a nós mesmos, sem portas, janelas ou alçapões para o que nos transcende ou mesmo para o que nos rodeia. A alegria é egoísta e, nesse sentido, infantil. Esgota-se toda no invólucro em que se dilata, e nunca se projecta. Não se quer perpetuar ou repetir porque não tem vontade, é pura espontaneidade. O seu legado é o tempo que subtraímos à atenção e à vigília. É míope. Falta-lhe lucidez. Aí, contudo, a sua força: não é controlável nem assimilável. Aí o seu potencial revolucionário: não reconhece autoridade. Tão-só, não sendo motivada por nenhuma ideia, não tendo nenhuma esperança, basta-lhe ser. Como as pedras. Como Deus. Muito pouco, quase nada. Como tudo o que é humano.