sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Nos envelopes, as cartas que me escreveste são os meus armários de sombra. De alguma maneira, Antonio, ajudam-me a ser humilde e um guardião menos inábil do sorriso da minha mulher. Nada mais peço à amizade.
Jean-François Millet, Pastora com o seu rebanho, 1864.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Relógios de estação: metrónomos encravados no compasso de nenhuma música. Nesta hora em que o sol se alinha com a terra e se divide no horizonte, os relógios perdem a sombra dos ponteiros. Estão certos como Deus.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Quando murcham, as flores declinam: pesa-lhes a beleza. Assim também o homem quando chega a idade. A cruz dá-lhe viço.

domingo, 25 de agosto de 2013

A floresta de árvores despidas pelo Inverno e a harpa da chuva cadenciam a manhã. Ruge o vento nos umbrais e o gado espera pacientemente sobre a lama. Nos meus ouvidos, porém, só se ouvem, inapeláveis, as bátegas nocturnas de Chopin. Já quase me abismo, ó leveza da aurora, nestes espelhos profundos, nesta chaga extemporânea.

sábado, 24 de agosto de 2013

As árvores despidas ocultam a copa na transparência. Um prenúncio de Primavera destila por entre os ramos desalinhados um vapor iridescente. O campo respira. Vou na última carruagem em direcção ao centro da minha vida. O gado engorda à beira do caminho, o sol desmaia. Ao longe, o rio faz uma curva.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O travo deste dia é acre como a paz de uma igreja lajeada de mortos que apodrecem com o incenso por cima e a bugia dos círios.
Daqui a pouco levantas-te, depois de descansares de uma noite passada a conservar vidas, vens até à sala acesa pelo sol, onde agora escrevo o que não sabes, debruças-te sobre mim, deitado neste sofá com o frio de uma tarde limpa de Inverno, e depositas-me um beijo que agoniza a solidão. Ouço os teus passos, são o eco da escrita.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Às vezes escutamos o poema dentro de nós; ele é bem o timbre e o ritmo. Mas cá fora, sobre o papel, que se inscreve em que nevoeiro? É então altura de calar o poema na cabeça e vir à folha riscar tudo. Aquele que escreve encobre.
O pobre e o poeta comungam no adiamento e na derrogação, e quem pensa dentro deles é a fome. A poesia não tem relação com o sustento.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Saint-John Perse (II)

Nocturno

Ei-los maduros, esses frutos de um suspeitoso destino. Pelo nosso sonho gerados, pelo nosso sangue nutridos, e assombrando a púrpura das nossas noites, eles são os frutos da longa inquietação, eles são os frutos do longo desejo, eles foram os nossos mais secretos cúmplices e, tantas vezes à beira da confissão, arrancavam-nos para os seus fins ao abismo das nossas noites… Ao fogo do dia todo favor! ei-los maduros e sob a púrpura, esses frutos de um imperioso destino — Aí não está a nossa vontade.

Sol do ser, traição! Onde foi a fraude, onde foi a ofensa? onde foi a falta e qual é a tara, e o erro, qual foi ele? Retomaremos o tema desde a sua origem? reviveremos a febre e o tormento?… Majestade da rosa, não nos causas grande admiração: o nosso sangue prefere o que é mais amargo, os nossos cuidados o que é mais severo, as nossas estradas são pouco seguras, e profunda a noite de onde se extraem os nossos deuses. Rosas caninas e silvas negras povoam para nós as margens do naufrágio.

Ei-los amadurecendo, esses frutos de uma outra margem. «Sol do ser, cobre-me!» — palavra do desertor. E aqueles que o terão visto passar dirão: quem foi este homem, e qual a sua morada? Iria ele sozinho expor ao fogo do dia a púrpura das suas noites?… Sol do ser, Príncipe e Mestre! as nossas obras estão dispersas, os nossos trabalhos sem honra e os nossos trigos sem colheita: a atadeira de feixes espera no declinar da tarde. — Ei-los pintados com o nosso sangue, esses frutos de um suspeitoso destino.

No seu ritmo de atadeira de feixes vai a vida sem ódio nem resgate.

1972.

Saint-John Perse, Chant pour un Équinoxe

- trad. minha