quarta-feira, 12 de julho de 2023

Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho APE/CML 2022


Compareço diante de vós como um réu tão injustamente acusado que, perante a enormidade do libelo, se sente incapaz de apresentar a sua defesa. Perdoem a minha inaptidão. O meu desejo é que tudo isto passe depressa e eu possa voltar para o sítio onde pertenço, longe dos vossos olhares e das vossas expectativas, que me tolhem o pensamento e me inibem os gestos. Mesmo que depois me arrependa e me penitencie por não ter funcionado em ocasião tão lisonjeira e gratificante. Avançado como estou na idade adulta, ainda não aprendi a contrariar esta inclinação, de que não me orgulho.
Escrevi, com efeito, os poemas que acharam por bem distinguir com este prémio, que muito me honra e que tanto agradeço, mas não sei como o fiz nem estou em condições de repeti-lo. Aliás, não reincido desde o último poema que escrevi para este livro, já lá vão quase dois anos. Soa-me sempre a calúnia ouvir o meu nome precedido do epíteto poeta. Não se é poeta. Quando muito, ter-se-á sido poeta. Ser poeta é uma proposição que só se conjuga no pretérito, se tivermos tido sorte. Da mesma forma, não posso dizer que sou corajoso, honesto ou honrado, mas apenas que o fui nesta ou naquela circunstância. Nada me garante que, chegada a ocasião, eu me mostre probo e destemido. Infelizes daqueles que, sem esperar o momento em que a sua vida se decida, se arriscam a fazer semelhantes afirmações. Eles vivem uma grande ilusão. E talvez nunca tenham sido poetas. Assim, é com uma tremenda sensação de estranheza que hoje me apresento diante de vós, feliz por me terem premiado o livro, triste por não me sentir à altura do que de bom encontraram nele.
Acresce a esse sentimento a má consciência sob cuja influência me é dado escrever o quase nada que tenho escrito. Não se trata da má consciência social de quem acusa o toque de Adorno, segundo o qual seria bárbaro escrever poemas depois de Auschwitz. É, talvez, pelo contrário, a má consciência privada do género da que levou Rimbaud, poeta de que insistentemente me tenho ocupado nos últimos anos, a renunciar à escrita. A má consciência de quem dedica todas as suas forças a uma impossibilidade que nada resolve, nada subleva, nada destrói e que não gera nenhum milagre, nem mesmo um desses milagres domésticos capazes de redimir momentaneamente o nosso insondável desamparo. A poesia, de resto, não redime coisa nenhuma, ela limita-se a revelar a necessidade de redenção. Ela não funciona como lenitivo, antes patenteia um sintoma. Simplesmente, na manifestação desse sintoma está o máximo a que, como espécie, podemos aspirar, porque é através desse sintoma que denunciamos a falha que nos constitui e em cujas coordenadas nos debatemos. A poesia dá nota de uma privação, mas não a suprime nem nos aproxima do que a suprimisse. Ela aponta para um horizonte, e é aí que está toda a sua quase nula dignidade. O horizonte, esse, mostra-se sempre ocluso e inalcançável. Nele projectamos a nossa alegria e a nossa unidade. Terrível engano. Foi assim que os poetas criaram os deuses, horizonte dos horizontes, e nos legaram esses mecanismos tão consoladores e tão letais. Foi assim que os poetas criaram tanta beleza onde ela não estava e não voltaria a estar, iludindo-nos com o que não temos nem podemos ter, mesmo que nesse logro entrevíssemos o que era legítimo reivindicarmos.
Foi a essa má consciência que pretendi aludir quando, por mais de uma vez, me referi à propensão para a humilhação por parte de quem escreve. Escrever é humilhar-se, persistir no fracasso. Daí que eu me sinta tão fascinado pelo enigma do silêncio de Rimbaud. É claro que a morte prematura, aos 37 anos, do poeta adolescente — e a um adolescente perdoam-se todos os sonhos, mesmo o sonho quimérico da poesia — tornou definitiva uma promessa que não sabemos se o homem maduro manteria. Afinal, esteve apenas 17 anos sem escrever, muito menos do que aqueles que lhe restaria viver em condições normais. Mas a verdade é que mesmo no leito da morte, de acordo com Victor Segalen, que se reportava a um testemunho da irmã do poeta, Isabelle Rimbaud, Arthur manifestava horror à poesia, exasperando-se quando aparecia um verso nos livros que ela lhe lia nas longas vigílias no hospital de Marselha.
Por outro lado, não sabemos se a sua renúncia foi totalmente voluntária. Ele poderá ter simplesmente deixado de conseguir escrever, poderá ter simplesmente deixado de sentir o impulso para a escrita. Tenho para mim a convicção de que o poema apenas intensifica ou aprofunda uma certa disponibilidade que o precede, um certo estado de espírito favorável, uma certa predisposição, mas não a pode criar. No máximo, concretiza a promessa contida nessa disponibilidade. É por isso que a poesia não nos pode salvar: quando funciona, quer dizer, quando acedemos a ela por experimentarmos em nós a disponibilidade que a substancia, já estamos salvos, já não precisamos de salvação. Ela é apenas o resíduo do que a anunciou. Primeiro, turvam-se os olhos, só então choramos. Primeiro, ilumina-se o rosto, só então sorrimos. Primeiro nasce a disponibilidade, só então a poesia nos fere ou nos extasia.
Não sei como criar essa disponibilidade. Mas se soubesse, ao contrário de Rimbaud, reincidiria de boa vontade. Só não esperaria grande coisa da recidiva.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Iluminações

Ódio à Poesia ou o Silêncio de Rimbaud (II)
(nova nota à margem de uma tradução)

Escrever. Que abjecção, que futilidade! Erguer bem alto a bandeira, tapar o sol com as nossas ignominiosas insígnias, na esperança de que outros bendigam tão insípida escuridão, prenhe de tão fátuos sentidos. Ou metê-la a meia haste, carregada de luto, confiantes na vocação vicária da manada de que nem sequer temos a coragem de nos tresmalhar, no enlevo de nos imaginarmos a liderar a debandada que nos arrasta, crendo serem chagas os rasgões dos cascos que nos pisam.
A inspiração, sim, essa é real. Por ela, valeria a pena morrer. Um instante de inspiração e seria a eternidade. A inspiração torna a escrita supérflua. Escrever o quê, para quê? Para redimir a redenção? Espúrias ilusões. Todo o escritor é um místico cobarde. Em pleno êxtase, põe-se a tergiversar. — Como Rimbaud, torna-te digno da inspiração!
E escreve, se não podes não escrever e se tens queda para a humilhação. Mas não esperes demasiado dos teus pecados. Eles não te abrirão as portas de nenhum céu. No máximo, poupar-te-ão a pele ao sol dos trópicos, conservar-te-ão intacta a planta dos pés. De resto, demasiado delicada para as grandes distâncias.
Se à noite as vires, às tuas «filhas», às tuas «rainhas», a esses «fantasmas do futuro luxo nocturno», fecha os olhos a tão detestável visão. Não te vás tornar vidente também.

domingo, 23 de abril de 2023

Canção Errónea



Ferve o orvalho debaixo das árvores torturadas e a chuva é negra sobre os muros                                                                                                 [e as papoilas.

É esta a terra? Estava limpa sob as estrelas.

Vão apodrecer as recordações, vai oxidar-se a neve, há animais minúsculos nas                                                                                                [minhas veias.

Por isto e pelo que concerne à numeração da tuberculose, aos tumores industriais                                                 [e à metralha no ventre das crianças asiáticas,
é preciso fazer alguma coisa.

Queimar, por exemplo, as finanças, por causa do que se disse e também

para que a merda não entre nas veias das nossas mães e para que ainda possam                                                                                          [sorrir um pouco

antes de morrer.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Romanças sem Palavras

 




III

Chove docemente na cidade.
(Arthur Rimbaud.)
Chora no meu coração
Como chove na cidade;
Que languidez invade
Meu pobre coração?

Oh, doce som da chuva
No chão e no telhado!
Para vencer o enfado
Oh, o canto da chuva!

Um choro sem razão
Neste peito afrontado.
Quê? Não há traição?...
É luto sem razão.

Não há pior desgosto
Que não saber porquê,
Sem ódio e sem amor,
Me invade este desgosto!

*

III

Il pleut doucement sur la ville.
(Arthur Rimbaud.)

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville ;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur ?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits !
Pour un coeur qui s’ennuie
Ô le chant de la pluie !

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s’écoeure.
Quoi ! nulle trahison ?…
Ce deuil est sans raison.

C’est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi,
Sans amour et sans haine,
Mon coeur a tant de peine !

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Uma Temporada no Inferno

 


Ódio à Poesia ou o Silêncio de Rimbaud

Nota à margem de uma tradução

 

A minha vida mude-a Deus ou finde-a…

Fernando Pessoa

 

Dezanove anos é tempo mais do que suficiente para mudar a vida. Talvez seja até demasiado tempo. Para tanto, tanto seria escusado. E se então se acorda dentro da mesma, supérflua vida, com a mesma, supérflua vida por viver toda uma longa, indecorosa vida — que fazer? Já se atravessou o Inferno, já se avistou um ou outro cometa, já se exercitou este e aquele poder sobrenatural, já se profetizou esta e aquela ocorrida desgraça, até já se fez a experiência do divino (afinal, uma pequena decepção). Dezanove anos e tudo feito, tudo visto, tudo vivido dentro da mesma, insípida vida. Dezanove demorados anos. É quanto basta. E então — que fazer?

Palmilhe-se o mundo, o sempre mesmo mundo. Vá-se a pé de um lugar para o outro, suba-se as montanhas nevosas com o farrapo das roupas e o puído cachimbo da infância, pernoite-se ao luar, sob a cálida emanação dos pólos, sugue-se a avara sopa dos mosteiros, libe-se a peçonha das amoras regurgitada pelos corvos no derradeiro estertor da sua opulenta envergadura, coza-se a cicuta dos caminhos em águas morbosas extraídas de poços secos. Aliste-se então num exército com vista à grande honra da deserção, embarque-se nos grandes navios do século, conheça-se o mar já antes adivinhado (e, afinal, outra pequena decepção — na infância é que tudo é imenso), solte-se imprecações ao luzeiro de um fogo de santelmo e desemboque-se, por fim, no Corno de África. Somália, Etiópia, o deserto. Qualquer lugar é bom para se guardar o nosso grande, o nosso rude, o nosso fero silêncio. Sim. Dezanove anos é tempo mais do que suficiente para mudar a vida. Quem o não consiga, que se cale para sempre. Ou fale e se cubra de ridículo. Felizes os que sabem capitular antes de se tornarem eloquentes.

Rimbaud esperou dezanove longos anos. O amor por reinventar, a revolta por eclodir. Tinha dezanove anos. Disse quem era, ao que tinha vindo e como falhara. Descreveu o Inferno e deu-lhe o seu verdadeiro nome: esperança. E depois calou-se.

Rimbaud não foi precoce, nós é que somos tardios. E eloquentes. Muito para lá do nosso tempo. É por isso que não somos Rimbaud.

 

 

João Moita


terça-feira, 19 de abril de 2022

terça-feira, 5 de abril de 2022

Festas Galantes

 


                        Os ingénuos

Os tacões lutavam com os longos vestidos,
De maneira que, conforme o terreno e o vento,
Luziam por vezes uns tornozelos, logo
Interceptados! – Mas que adorável tormento.

Outras, o ferrão de algum insecto invejoso
Picava o pescoço das belas sob os ramos,
E era então súbitos clarões de nucas brancas,
Um regalo pròs nossos olhos delirantes.

Declinava uma equívoca noite de Outono:
Sonhadoras, apoiadas nos nossos braços,
Sussurravam-nos coisas tão especiosas
Que ainda hoje as nossas almas se incendeiam.

*

                          Les ingénus

Les hauts talons luttaient avec les longues jupes,
En sorte que, selon le terrain et le vent,
Parfois luisaient des bas de jambe, trop souvent
Interceptés ! – et nous aimions ce jeu de dupes.

Parfois aussi le dard d’un insecte jaloux
Inquiétait le col des belles sous les branches,
Et c’était des éclairs soudains de nuques blanches
Et ce régal comblait nos jeunes yeux de fous.

Le soir tombait, un soir équivoque d’automne :
Les belles, se pendant rêveuses à nos bras,
Dirent alors des mots si spécieux, tout bas,
Que notre âme depuis ce temps tremble et s’étonne.


Paul Verlaine, Fêtes galantes, 1869 [Festas Galantes, ilust. George Barbier, trad. João Moita, Guerra & Paz Editores, 2022] 


terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

O Trágico — Sacrifício sem Recompensa

 

(Comunicação lida no âmbito da mesa-redonda de poetas inserida no VI Colóquio Internacional A Literatura Clássica ou Os Clássicos na Literatura, org. Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Janeiro de 2022.)

 

À Isabel Santiago

 

Sei precisar com exactidão o ano do meu primeiro contacto com a literatura da Antiguidade Clássica. Sei-o não porque tenha uma memória prodigiosa — os deuses não me bafejaram com essa graça —, mas porque guardo desde então um documento datado que mo atesta. Decorria o ano de 2002, eu era um adolescente de 17 anos a arrastar a carcaça lânguida pelas salas frias da escola secundária da minha terra, e uma professora digna desse nome — uma autêntica raridade —, apercebendo-se de que o meu mau comportamento, a minha displicência e o meu desinteresse generalizado não impediam o florescimento de uma paixão incomum pela literatura, decidiu iniciar-me em leituras que ela esperava — e com razão — que me pudessem ajudar naquela fase tão crítica da minha vida.

Recordo que um dia me emprestou o seu exemplar de O Estrangeiro, de Albert Camus, e que o impacto da estranheza dessa leitura foi tal que não pude descansar enquanto não lesse O Mito de Sísifo, que eu esperava que me esclarecesse aquela inquietante jornada daquela tão desconcertante personagem. Assim, tê-lo-ei pedido à minha professora. Estaríamos em finais do segundo período, ela ter-se-á esquecido de mo trazer, conjecturo agora, e ter-me-á dito que mo traria no início das férias, para que eu o fosse levantar já não me lembro onde. No dia combinado, dirigi-me ao local e perguntei à funcionária da escola se a professora Isabel Santiago tinha deixado alguma coisa para mim. Em vez de O Mito de Sísifo, tinha à minha espera uma tradução de Rei Édipo e um bilhete que dizia o seguinte:

«João, repensando o Camus, troquei-o por uma tragédia, Édipo. Camus fica para depois. Aposto que é mais importante nesta fase, no meio de tanto senso comum tão pouco esclarecido, que o João se confronte com gestos humanos de dignidade inultrapassável. Para não se sentir a arrefecer num mundo desumano e indiferente.»

Como podem imaginar, aquela mensagem abalou-me. Era como se a minha professora tivesse decifrado o meu coração. No meio do marasmo das vidas comezinhas e nunca questionadas, havia, afinal, «gestos humanos de dignidade inultrapassável», e eu podia encontrá-los — talvez só pudesse encontrá-los — nas tragédias gregas escritas há mais de 2500 anos. E o gelo que crescia a toda a volta talvez tivesse ali um antídoto infernal.

O que depois descobri, para meu grande espanto, era um pouco mais complexo do que isso. É que, a juntar aos «gestos de dignidade inultrapassável», ou não bem a juntar-se-lhes, mas possibilitando-os, propiciando-os até, convivendo com eles numa relação de continuidade, de dependência quase simbiótica, estavam actos monstruosos, absolutamente terríficos e imperdoáveis segundo os nossos padrões morais. O mais digno dos seres humanos era, ao mesmo tempo, o mais infame. Com isso, naturalmente, eu era capaz de me identificar.

O crime mais hediondo, a transgressão mais inconcebível eram cometidos com a naturalidade de tudo o que acontece por não poder deixar de acontecer. O monstro era humano, e o humano era monstruoso. Não podia conceber mais bela iniciação à simples e irredutível verdade da vida: tão cega é a justiça como a injustiça. Tão injusta é a fortuna como o seu revés. Tudo o que em consciência possamos louvar é, ao mesmo tempo, merecedor do nosso mais altivo repúdio. Todo o bem tem um lastro de maldade.

Curiosamente, foi o livro na altura preterido que me ajudou a esclarecer todas estas intuições que indefinidamente me espicaçavam ao ler as tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípides: Sísifo elevado por Camus a epítome do herói trágico. Havia que imaginar Sísifo feliz, dizia o campeão do absurdo. Sísifo, espoliado do atributo mais humano dos atributos, a esperança, devia ser feliz. Esta «felicidade sem esperança», que vim a encontrar mais tarde em alguns dos autores que mais me marcaram, como Antonio Gamoneda, Saint-John Perse ou Vergílio Ferreira, passou a ser para mim não só a manifestação mais imediata do sentimento trágico da vida, mas também, e sobretudo, o efeito estético por excelência e o meu desígnio enquanto poeta.

No entanto, ainda tinha de esclarecer de onde vinha esta felicidade de uma qualidade tão especial que era capaz não só de sobreviver, como de prosperar num mundo isento de esperança. Ou, pior ainda, que nele a vinha render. A chave parece estar no que Camus diz sobre os motivos que levaram à punição de Sísifo. Argumenta ele que foram o seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida que o condenaram a arrastar eternamente a pedra do seu calvário, acrescentando ainda esta frase enigmática: «não há destino que não se transcenda pelo desespero». Tudo o que caía fora do domínio do humano, os deuses e a morte, era rejeitado, votado a um desprezo inoperante, mas nem por isso menos visceral. Sísifo terá, então, reivindicado aos deuses a autonomia do humano, assumindo o seu suplício como condenação à medida do seu desespero. Nada mais podendo esperar, era feliz. Tudo estava consumado. «Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside», assegura Camus, «o seu destino pertence-lhe.» (p. 126)

Essa é, para mim, a grande lição da visão trágica grega, que se opõe diametralmente à visão trágica cristã, com a sua assunção da culpa e a sua sede de redenção. O nosso destino pertence-nos, não aos deuses: Édipo cega-se de livre vontade, Édipo deseja o seu suplício, não para através dele se purificar, não para recuperar as boas graças dos deuses, mas para que ele seja a marca indelével de um destino que só a ele lhe pertence, que lhe é consubstancial. Reconhecendo-se monstruoso, Édipo reivindica a sua monstruosidade, isto é, a sua humanidade, na forma do desespero. Assume-o e não aceita uma vida em que este lhe seja sonegado a título de recompensa. Édipo sente-se recompensado no seu desespero.

Porque só ao herói trágico é permitido desesperar. O herói cristão, ou o seu sucedâneo, o herói marxista, por exemplo, não desesperam, sob pena de perderem o ideal no qual fundamentam a sua heroicidade. O herói trágico não tem ideal que o redima, redime-se todo no seu desespero. A tragédia de Cristo foi refutada pela ressurreição de Cristo. E é só por isso, a meu ver, que a tragédia grega é superior ao Novo Testamento. Ao contrário de Édipo, Cristo não soube viver o seu destino até ao fim. Para tanto, bastar-lhe-ia recusar-se a regressar. Parafraseando George Steiner no seu célebre ensaio The Death of Tragedy, a verdadeira tragédia só pode ter lugar quando a alma atormentada admite para si mesma que já não há tempo para o perdão de Deus. É então que se lhe torna evidente que é preciso ir até ao fim. É preciso que a desgraça seja consumada. O herói trágico, aristocrático por definição, aspira sempre ao máximo, mesmo que esse máximo redunde em excesso. E o excesso é que é trágico.

Assim, se alguma influência da mundividência grega reconheço no que escrevo, ela só pode ser a da assunção do conhecimento trágico tal como foi definido pela filósofa espanhola María Zambrano em O Homem e o Divino: «O conhecimento que a tragédia trazia», diz ela, «era simplesmente o conhecimento do homem. A reabsorção de qualquer destino e também de qualquer falta, por maior que seja, na condição humana.» (p. 195) O que faço nos meus poemas, ou que gostaria de fazer, é reclamar uma vivência mais trágica, mais grega, para o meu fundo judaico-cristão, confrontando o deus do perdão com a recusa do perdão, e ostentando, assim, perante a sua opacidade, a ignomínia do aviltamento com cuja remissão ele pretende salvar-nos, salvando-se apenas a si e às suas prerrogativas. É preciso, em nome do desespero, assumir tragicamente o fardo da perdição. E, como Camus, é preciso imaginar Sísifo feliz, couraçado pelas provações dos deuses, que já nada podem contra ele, enquanto passeia pela trela a sua pedra, que já nada, nem ninguém, lhe podem tirar. Sísifo é feliz porque é Sísifo e porque tem uma pedra para se lembrar de quem é.

Termino, se me é permitido, com a leitura de um poema que publiquei no meu livro de 2019, Uma Pedra sobre a Boca, e que penso poder exemplificar o que acabo de dizer. Trata-se de uma reformulação trágica, no sentido que tenho dado ao termo, do episódio do Génesis em que Deus põe Abraão à prova, mandando-o acompanhar o seu filho Isaac até ao monte Moriá, onde devia sacrificá-lo para fazer prova da sua fé. No meu poema, no auge da agonia, quando Deus detém a mão de Abraão, inclinado sobre o filho, e lhe aponta o cordeiro que deve sacrificar no seu lugar, Abraão dirige-se a Jeová nos seguintes termos:

 

«Na garganta de Isaac, sinto já avermelhar-se a minha faca —

serás tu, Senhor, o sustento da minha culpa.

Como a suportaria se a minha fé não fosse

maior do que tu?»

 

Nesta fé maior do que Deus, encontro a essência do trágico.


sexta-feira, 10 de setembro de 2021


 Mote


Fernando Pessoa, escrevendo sobre Salazar, afirmou que este não tinha cultura literária e isso o desumanizava, fazendo dele um cadáver emotivo. É para não sermos «cadáveres emotivos», que «Vamos Ler Poesia»?


Glosa


Devo começar por lembrar, a propósito do nosso mote, que nem tudo o que um génio escreve é necessariamente genial, afirmação que se reveste de particular pertinência no caso de Fernando Pessoa, que não teve tempo ou vontade de depurar a sua produção. Com efeito, esta passagem, segundo a leitura que dela faço, parece-me sumamente infeliz, na medida em que diz o contrário daquilo que pretende dizer. Um cadáver emotivo será, talvez, Lázaro, que, estando morto, se comoveu com o poder encantatório da palavra de Jesus, não Salazar, que seria, quando muito, um repolho insensível ou um dejecto ambulante. De alguma forma, e contra a sua vontade, Fernando Pessoa parece estar a outorgar a Salazar uma espécie muito especial de eternidade, à qual este, de resto, intimamente aspirava: refiro-me à categoria supersticiosa do anjo, mais precisamente, do anjo da guarda, o cadáver emotivo por excelência, o morto vigilante, esse omnipresente e opressivo mediador.

Deixemos, pois, Salazar e viremo-nos para Lázaro ressuscitado pelas injunções poéticas de Jesus. A pergunta do nosso mote inverter-se-á então. O que importa saber é se «É para sermos “cadáveres emotivos” que lemos poesia». Concede-nos a poesia alguma espécie de redenção que confira ao cadáver errante que quotidianamente somos a capacidade de nos emocionarmos? Poderá a poesia expandir a nossa vida, concedendo ao nosso «cadáver adiado» — formulação bem mais feliz do mesmo génio — o atributo da emoção?

Estamos todos familiarizados com as defesas empoladas da poesia, com o exacerbamento egocêntrico e pretensioso dos poetas, partes mais do que interessadas na difusão de tamanhas leviandades. Não gostaria de cair aqui no mesmo erro. Não me parece, no entanto, que se possa refutar que a razão pela qual lemos poesia, ou, para o efeito, ouvimos música ou contemplamos pinturas, tem que ver com a nossa capacidade mais ou menos desenvolvida, consoante as circunstâncias da nossa vida e o empenho da nossa militância, de nos emocionarmos com as obras de arte, e que essa emoção assim induzida tem algo de revigorante, como Lázaro o terá testemunhado. Esta indução da emoção não é, contudo, prerrogativa exclusiva da poesia. Aliás, em arte trata-se sempre de emoção em segundo grau, ou seja, por afinidade. Evoco aqui, por exemplo, o conceito cunhado por T. S. Eliot de «correlativo objectivo», sobre o qual não me alongarei. Mas evoco também a ideia de que a arte é sempre a consubstanciação de um «outro» com o qual o «eu» se confronta, se mede e, às vezes, se confunde. O «outro» que é «texto» e o «eu» que nunca pode ser «texto», a não ser quando a morte transforma a vida em destino, para citar a célebre frase de Malraux. A arte apresenta-nos sempre uma determinada vivência outra que alguém, outro, vive, e, portanto, dá-nos a comoção de um outro viver, ou então, o que é mais próprio da poesia e da música, põe-nos a viver uma outra vida. Significa isto, para responder à questão que acima propunha, que a poesia não expande a nossa vida, mas faz a nossa vida defrontar-se com o que é expandido. A poesia é, assim, exemplar, isto é, ela oferece-nos exemplos do que é irredutivelmente outro, e é por isso que o acto da escrita é o acto criativo por excelência, como, de resto, sabemos de grande parte das cosmogonias, a começar pela do Evangelho de João: «No princípio era o Verbo (…)», e ao fazer-se carne, tornou-se poema.

Mas será que precisamos mesmo de ler poesia para nos tornarmos cadáveres emotivos? Dizia há pouco que esta capacidade para induzir emoção não é prerrogativa exclusiva da poesia. Entendo que a poesia é um dos modos, nem sempre eficaz, de aceder a um domínio da vida que se caracteriza pela intensificação dos esquemas de percepção do mundo e da nossa existência. A esse domínio, chamemos-lhe domínio lírico, podemos aceder em momentos críticos da nossa vida, e todos a ele acedemos nem que seja uma vez. Assim o entende, por exemplo, Emil Cioran, quando, no seu livro Nos Cumes do Desespero, afirma que «alguns [de nós] não se tornam líricos senão nos momentos decisivos da sua existência; para outros, isso acontece apenas no momento da agonia, quando todo o passado se faz presente e rebenta sobre eles como uma torrente. Mas, na maior parte dos casos, a explosão lírica surge na sequência de experiências essenciais, quando a agitação do fundo íntimo do ser atinge o paroxismo.»

A poesia será, pois, apenas um facilitador da entrada nesse domínio. De resto, falível, e tantas vezes inconsequente. Será pouco? Será muito? Lembremo-nos simplesmente, e com isto termino, que sem poesia não há deuses, e sem deuses não há, para o bem e para o mal, humanidade.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Robert Frost (I)

 



Há quem diga que o mundo vai acabar em chamas,
Há quem diga que em gelo.
Pelo que me foi dado experimentar do desejo
Estou do lado dos que preferem o fogo.
Mas se ele viesse a perecer duas vezes,
Julgo conhecer do ódio o bastante
Para dizer que para destruição o gelo
Também é bom
E era quanto bastava.

Robert Frost, 1920.

*

Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I’ve tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Emily Dickinson V



Poema 1100


A Noite que a levou
Era uma Noite Comum
Tirando a Morte — isso mudou
O Mundo à Nossa volta

Visíveis as mais ínfimas
Coisas antes ocultas
Pela luz sobre as nossas Mentes
Como direi — grifadas.

Numa roda viva entre
O Seu último Quarto
E os Daqueles que estarão vivos
Amanhã, o Remorso

Por Outros existirem
E Ela ter de partir
Uma Inveja quase infinita
Ela em nós despertou —

A agonia aguardámos —
Foi um piscar de olhos —
Oclusos não dissemos nada —
Logo veio a notícia.

O que disse, olvidou —
E, leve como um Junco
À flor do Lago, sem dar luta —
À morte se entregou —

Alisado o Cabelo — 
O Ar lhe compusemos —
Então terrível ócio foi
A fé recalibrar — 

(1866)


*

The last Night that She lived
It was a Common Night
Except the Dying — this to Us
Made Nature different

We noticed smallest things —
Things overlooked before
By this great light upon our Minds
Italicized — as 'twere.

As We went out and in
Between Her final Room
And Rooms where Those to be alive
Tomorrow were, a Blame

That Others could exist
While She must finish quite
A Jealousy for Her arose
So nearly Infinite —

We waited while She passed —
It was a narrow time —
Too jostled were Our Souls to Speak —
At length the notice came.

She mentioned, and forgot —
Then lightly as a Reed
Bent to the Water, struggled scarce —
Consented, and was dead —

And We — We placed the Hair —
And drew the Head erect —
And then an awful leisure was
Belief to regulate —

terça-feira, 24 de novembro de 2020

domingo, 19 de julho de 2020

terça-feira, 14 de julho de 2020

sexta-feira, 29 de maio de 2020

As Flores do Mal


Disponível em: https://relogiodagua.pt/produto/as-flores-do-mal-2/ e a chegar às livrarias: As Flores do Mal, de Charles Baudelaire (trad. de João Moita)

«A edição que agora se apresenta contém todos os poemas da segunda edição de As Flores do Mal, de 1861, seguida dos 6 poemas condenados e dos 24 acrescentos à terceira edição, excluindo a tradução de Longfellow. É, por isso, a mais completa edição em Portugal da obra poética de Charles Baudelaire, depois do esforço sumamente meritório de Fernando Pinto de Amaral (que incluía apenas a segunda edição e os poemas condenados) e das inspiradas derivas de Maria Gabriela Llansol (que incluía a segunda edição, os poemas condenados e apenas os poemas acrescentados à terceira edição que não constavam de Épaves). Há também registo de uma edição parcial da obra, publicada em 1909 e traduzida por Delfim Guimarães, que não pude consultar.
Acrescentou-se ainda em Apêndice, a título de curiosidade, os projetos de prefácios que Baudelaire redigiu para a segunda e uma eventual terceira edição da obra, e que nunca chegou a publicar, bem como as notas que grafou para o seu advogado aquando do processo judicial que levou à condenação do livro.
Caberia aqui, como é apanágio nestas ocasiões, socorrer-me do clássico recurso retórico de captatio benevolentiæ, no qual o tradutor chama a atenção do benevolente leitor para as necessárias fragilidades que um exercício desta natureza sempre comporta, ao mesmo tempo que expõe o método que em teoria terá usado, mas que na prática não conseguiu aplicar mais do que uma ou duas vezes, as necessárias para dele poder extrair um ou dois exemplos. Eximo-me a esse esforço, deixando ao leitor, que se espera implacável e ferino, a tarefa de escrutinar os méritos que a tradução possa ter ou de lhe apontar os defeitos. Deixo apenas a ressalva de que se respeitou escrupulosamente a métrica baudelairiana, salvo não mais do que um punhado disperso de exceções. As notas quiseram-se tão escassas quanto possível.
Quanto ao mais, a beleza que há no mal torna-se seguramente mais incisiva se não a embotarmos com explicações redundantes.

João Moita»

[Da Nota do Tradutor]