segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Uma Temporada no Inferno

 


Ódio à Poesia ou o Silêncio de Rimbaud

Nota à margem de uma tradução

 

A minha vida mude-a Deus ou finde-a…

Fernando Pessoa

 

Dezanove anos é tempo mais do que suficiente para mudar a vida. Talvez seja até demasiado tempo. Para tanto, tanto seria escusado. E se então se acorda dentro da mesma, supérflua vida, com a mesma, supérflua vida por viver toda uma longa, indecorosa vida — que fazer? Já se atravessou o Inferno, já se avistou um ou outro cometa, já se exercitou este e aquele poder sobrenatural, já se profetizou esta e aquela ocorrida desgraça, até já se fez a experiência do divino (afinal, uma pequena decepção). Dezanove anos e tudo feito, tudo visto, tudo vivido dentro da mesma, insípida vida. Dezanove demorados anos. É quanto basta. E então — que fazer?

Palmilhe-se o mundo, o sempre mesmo mundo. Vá-se a pé de um lugar para o outro, suba-se as montanhas nevosas com o farrapo das roupas e o puído cachimbo da infância, pernoite-se ao luar, sob a cálida emanação dos pólos, sugue-se a avara sopa dos mosteiros, libe-se a peçonha das amoras regurgitada pelos corvos no derradeiro estertor da sua opulenta envergadura, coza-se a cicuta dos caminhos em águas morbosas extraídas de poços secos. Aliste-se então num exército com vista à grande honra da deserção, embarque-se nos grandes navios do século, conheça-se o mar já antes adivinhado (e, afinal, outra pequena decepção — na infância é que tudo é imenso), solte-se imprecações ao luzeiro de um fogo de santelmo e desemboque-se, por fim, no Corno de África. Somália, Etiópia, o deserto. Qualquer lugar é bom para se guardar o nosso grande, o nosso rude, o nosso fero silêncio. Sim. Dezanove anos é tempo mais do que suficiente para mudar a vida. Quem o não consiga, que se cale para sempre. Ou fale e se cubra de ridículo. Felizes os que sabem capitular antes de se tornarem eloquentes.

Rimbaud esperou dezanove longos anos. O amor por reinventar, a revolta por eclodir. Tinha dezanove anos. Disse quem era, ao que tinha vindo e como falhara. Descreveu o Inferno e deu-lhe o seu verdadeiro nome: esperança. E depois calou-se.

Rimbaud não foi precoce, nós é que somos tardios. E eloquentes. Muito para lá do nosso tempo. É por isso que não somos Rimbaud.

 

 

João Moita


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