sexta-feira, 10 de setembro de 2021


 Mote


Fernando Pessoa, escrevendo sobre Salazar, afirmou que este não tinha cultura literária e isso o desumanizava, fazendo dele um cadáver emotivo. É para não sermos «cadáveres emotivos», que «Vamos Ler Poesia»?


Glosa


Devo começar por lembrar, a propósito do nosso mote, que nem tudo o que um génio escreve é necessariamente genial, afirmação que se reveste de particular pertinência no caso de Fernando Pessoa, que não teve tempo ou vontade de depurar a sua produção. Com efeito, esta passagem, segundo a leitura que dela faço, parece-me sumamente infeliz, na medida em que diz o contrário daquilo que pretende dizer. Um cadáver emotivo será, talvez, Lázaro, que, estando morto, se comoveu com o poder encantatório da palavra de Jesus, não Salazar, que seria, quando muito, um repolho insensível ou um dejecto ambulante. De alguma forma, e contra a sua vontade, Fernando Pessoa parece estar a outorgar a Salazar uma espécie muito especial de eternidade, à qual este, de resto, intimamente aspirava: refiro-me à categoria supersticiosa do anjo, mais precisamente, do anjo da guarda, o cadáver emotivo por excelência, o morto vigilante, esse omnipresente e opressivo mediador.

Deixemos, pois, Salazar e viremo-nos para Lázaro ressuscitado pelas injunções poéticas de Jesus. A pergunta do nosso mote inverter-se-á então. O que importa saber é se «É para sermos “cadáveres emotivos” que lemos poesia». Concede-nos a poesia alguma espécie de redenção que confira ao cadáver errante que quotidianamente somos a capacidade de nos emocionarmos? Poderá a poesia expandir a nossa vida, concedendo ao nosso «cadáver adiado» — formulação bem mais feliz do mesmo génio — o atributo da emoção?

Estamos todos familiarizados com as defesas empoladas da poesia, com o exacerbamento egocêntrico e pretensioso dos poetas, partes mais do que interessadas na difusão de tamanhas leviandades. Não gostaria de cair aqui no mesmo erro. Não me parece, no entanto, que se possa refutar que a razão pela qual lemos poesia, ou, para o efeito, ouvimos música ou contemplamos pinturas, tem que ver com a nossa capacidade mais ou menos desenvolvida, consoante as circunstâncias da nossa vida e o empenho da nossa militância, de nos emocionarmos com as obras de arte, e que essa emoção assim induzida tem algo de revigorante, como Lázaro o terá testemunhado. Esta indução da emoção não é, contudo, prerrogativa exclusiva da poesia. Aliás, em arte trata-se sempre de emoção em segundo grau, ou seja, por afinidade. Evoco aqui, por exemplo, o conceito cunhado por T. S. Eliot de «correlativo objectivo», sobre o qual não me alongarei. Mas evoco também a ideia de que a arte é sempre a consubstanciação de um «outro» com o qual o «eu» se confronta, se mede e, às vezes, se confunde. O «outro» que é «texto» e o «eu» que nunca pode ser «texto», a não ser quando a morte transforma a vida em destino, para citar a célebre frase de Malraux. A arte apresenta-nos sempre uma determinada vivência outra que alguém, outro, vive, e, portanto, dá-nos a comoção de um outro viver, ou então, o que é mais próprio da poesia e da música, põe-nos a viver uma outra vida. Significa isto, para responder à questão que acima propunha, que a poesia não expande a nossa vida, mas faz a nossa vida defrontar-se com o que é expandido. A poesia é, assim, exemplar, isto é, ela oferece-nos exemplos do que é irredutivelmente outro, e é por isso que o acto da escrita é o acto criativo por excelência, como, de resto, sabemos de grande parte das cosmogonias, a começar pela do Evangelho de João: «No princípio era o Verbo (…)», e ao fazer-se carne, tornou-se poema.

Mas será que precisamos mesmo de ler poesia para nos tornarmos cadáveres emotivos? Dizia há pouco que esta capacidade para induzir emoção não é prerrogativa exclusiva da poesia. Entendo que a poesia é um dos modos, nem sempre eficaz, de aceder a um domínio da vida que se caracteriza pela intensificação dos esquemas de percepção do mundo e da nossa existência. A esse domínio, chamemos-lhe domínio lírico, podemos aceder em momentos críticos da nossa vida, e todos a ele acedemos nem que seja uma vez. Assim o entende, por exemplo, Emil Cioran, quando, no seu livro Nos Cumes do Desespero, afirma que «alguns [de nós] não se tornam líricos senão nos momentos decisivos da sua existência; para outros, isso acontece apenas no momento da agonia, quando todo o passado se faz presente e rebenta sobre eles como uma torrente. Mas, na maior parte dos casos, a explosão lírica surge na sequência de experiências essenciais, quando a agitação do fundo íntimo do ser atinge o paroxismo.»

A poesia será, pois, apenas um facilitador da entrada nesse domínio. De resto, falível, e tantas vezes inconsequente. Será pouco? Será muito? Lembremo-nos simplesmente, e com isto termino, que sem poesia não há deuses, e sem deuses não há, para o bem e para o mal, humanidade.

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