quarta-feira, 12 de julho de 2023

Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho APE/CML 2022


Compareço diante de vós como um réu tão injustamente acusado que, perante a enormidade do libelo, se sente incapaz de apresentar a sua defesa. Perdoem a minha inaptidão. O meu desejo é que tudo isto passe depressa e eu possa voltar para o sítio onde pertenço, longe dos vossos olhares e das vossas expectativas, que me tolhem o pensamento e me inibem os gestos. Mesmo que depois me arrependa e me penitencie por não ter funcionado em ocasião tão lisonjeira e gratificante. Avançado como estou na idade adulta, ainda não aprendi a contrariar esta inclinação, de que não me orgulho.
Escrevi, com efeito, os poemas que acharam por bem distinguir com este prémio, que muito me honra e que tanto agradeço, mas não sei como o fiz nem estou em condições de repeti-lo. Aliás, não reincido desde o último poema que escrevi para este livro, já lá vão quase dois anos. Soa-me sempre a calúnia ouvir o meu nome precedido do epíteto poeta. Não se é poeta. Quando muito, ter-se-á sido poeta. Ser poeta é uma proposição que só se conjuga no pretérito, se tivermos tido sorte. Da mesma forma, não posso dizer que sou corajoso, honesto ou honrado, mas apenas que o fui nesta ou naquela circunstância. Nada me garante que, chegada a ocasião, eu me mostre probo e destemido. Infelizes daqueles que, sem esperar o momento em que a sua vida se decida, se arriscam a fazer semelhantes afirmações. Eles vivem uma grande ilusão. E talvez nunca tenham sido poetas. Assim, é com uma tremenda sensação de estranheza que hoje me apresento diante de vós, feliz por me terem premiado o livro, triste por não me sentir à altura do que de bom encontraram nele.
Acresce a esse sentimento a má consciência sob cuja influência me é dado escrever o quase nada que tenho escrito. Não se trata da má consciência social de quem acusa o toque de Adorno, segundo o qual seria bárbaro escrever poemas depois de Auschwitz. É, talvez, pelo contrário, a má consciência privada do género da que levou Rimbaud, poeta de que insistentemente me tenho ocupado nos últimos anos, a renunciar à escrita. A má consciência de quem dedica todas as suas forças a uma impossibilidade que nada resolve, nada subleva, nada destrói e que não gera nenhum milagre, nem mesmo um desses milagres domésticos capazes de redimir momentaneamente o nosso insondável desamparo. A poesia, de resto, não redime coisa nenhuma, ela limita-se a revelar a necessidade de redenção. Ela não funciona como lenitivo, antes patenteia um sintoma. Simplesmente, na manifestação desse sintoma está o máximo a que, como espécie, podemos aspirar, porque é através desse sintoma que denunciamos a falha que nos constitui e em cujas coordenadas nos debatemos. A poesia dá nota de uma privação, mas não a suprime nem nos aproxima do que a suprimisse. Ela aponta para um horizonte, e é aí que está toda a sua quase nula dignidade. O horizonte, esse, mostra-se sempre ocluso e inalcançável. Nele projectamos a nossa alegria e a nossa unidade. Terrível engano. Foi assim que os poetas criaram os deuses, horizonte dos horizontes, e nos legaram esses mecanismos tão consoladores e tão letais. Foi assim que os poetas criaram tanta beleza onde ela não estava e não voltaria a estar, iludindo-nos com o que não temos nem podemos ter, mesmo que nesse logro entrevíssemos o que era legítimo reivindicarmos.
Foi a essa má consciência que pretendi aludir quando, por mais de uma vez, me referi à propensão para a humilhação por parte de quem escreve. Escrever é humilhar-se, persistir no fracasso. Daí que eu me sinta tão fascinado pelo enigma do silêncio de Rimbaud. É claro que a morte prematura, aos 37 anos, do poeta adolescente — e a um adolescente perdoam-se todos os sonhos, mesmo o sonho quimérico da poesia — tornou definitiva uma promessa que não sabemos se o homem maduro manteria. Afinal, esteve apenas 17 anos sem escrever, muito menos do que aqueles que lhe restaria viver em condições normais. Mas a verdade é que mesmo no leito da morte, de acordo com Victor Segalen, que se reportava a um testemunho da irmã do poeta, Isabelle Rimbaud, Arthur manifestava horror à poesia, exasperando-se quando aparecia um verso nos livros que ela lhe lia nas longas vigílias no hospital de Marselha.
Por outro lado, não sabemos se a sua renúncia foi totalmente voluntária. Ele poderá ter simplesmente deixado de conseguir escrever, poderá ter simplesmente deixado de sentir o impulso para a escrita. Tenho para mim a convicção de que o poema apenas intensifica ou aprofunda uma certa disponibilidade que o precede, um certo estado de espírito favorável, uma certa predisposição, mas não a pode criar. No máximo, concretiza a promessa contida nessa disponibilidade. É por isso que a poesia não nos pode salvar: quando funciona, quer dizer, quando acedemos a ela por experimentarmos em nós a disponibilidade que a substancia, já estamos salvos, já não precisamos de salvação. Ela é apenas o resíduo do que a anunciou. Primeiro, turvam-se os olhos, só então choramos. Primeiro, ilumina-se o rosto, só então sorrimos. Primeiro nasce a disponibilidade, só então a poesia nos fere ou nos extasia.
Não sei como criar essa disponibilidade. Mas se soubesse, ao contrário de Rimbaud, reincidiria de boa vontade. Só não esperaria grande coisa da recidiva.

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