Março já vai bem avançado. Somos sugados não sei para que
precipício. A nossa inacção não logra deter o mundo. Pelo contrário, sem sentirmos
a vertigem, tolhidos de anemia, praticamente afásicos, nem damos pela
aceleração. O Inverno teima em não ceder. Tem chovido o que deve e as abertas
são as esperadas. A tristeza e a solidão alastram como metástases. Sou este
despropósito. Gastei os sonhos e as aspirações. Perdi as obsessões. Despromovi
as paixões. Sou um ser deflaccionado. Já nada me entusiasma e já nada espero. A
inteligência regrediu, a memória minguou, o palato secou. Vulgarizei-me e não
sei viver vulgarmente. Estou só e não quero ninguém. Nada nem ninguém. Amanhã é
outro dia. Algo prossegue subterraneamente. Je est un autre.
João Moita
domingo, 1 de junho de 2025
Março
sábado, 31 de maio de 2025
Escrever
Tão difícil escrever. As palavras vêm a conta-gotas, represadas. Como uma ampulheta de mil grãos de areia destinada a contabilizar a eternidade. Depois, um grão maior entope o mecanismo. Não quer sair. Agito, rodo, viro e reviro a ampulheta, mas o grão não sai. Os outros acumulam-se atrás, aguardam a sua vez, hesitam em adiantar-se, misturam-se, saem da ordem. Então pouso a ampulheta e desisto de medir o tempo. Por falta de tempo. — Pudesse abrir as comportas, deixar sair tudo de roldão e tudo estar certo e no seu devido lugar! Então ainda haveria tempo.
sexta-feira, 30 de maio de 2025
Farol
Arderam todas as fogueiras, consumiram-se todas as brasas, dispersaram-se todas as cinzas. Terra queimada, nenhum combustível. — E vagueia ainda esta ardência pelo mundo? Que podes inflamar? Que esperas dessa tua perpétua incineração? Deixa que se apague lentamente a tua chama.
quarta-feira, 28 de maio de 2025
terça-feira, 27 de maio de 2025
Que Túmulo em Que Talhão (revisited)
Tive a felicidade de poder rever a minha vila com olhos
virgens. Foi uma bênção e uma sagração. Depois, voltou-se-me a gastar. Mas, por
uns meses, ela apareceu-me como no sétimo dia da Criação. Tudo era estranheza e
sobressalto. Eu era eu sem o que lá tinha sido. Não um estrangeiro, mas um
filho da terra acabado de nascer, atirado para o Paraíso com tudo o que lá
reluzia ou chamuscava, sem conhecimento de outro lugar ou de outro tempo. A
criança que fui era contemporânea do adulto que estava a ser. Plácida planície
sem constrições, tudo aberto a perder de vista: ao fundo, a intuição de umas
montanhas, Serra d’Aire, Serra da Estrela, os Pirenéus, os Himalaias. Céus
altos e vastidão. Naquele cenário, como admitir ser compelido por uma ideia,
uma paixão, uma qualquer adesão, uma qualquer autoridade? Sabendo que depois da
distância há mais distância? Horizonte tão inacessível que convidava à inacção.
Se tivesse esperança de alcançar, esta tolher-me-ia os pés, e então lembrar-me-ia
de tudo e tudo perderia o encanto. Por uns meses, fui feliz na minha terra. E
só depois o soube.
segunda-feira, 26 de maio de 2025
Alegria
A alegria exalta e inebria. Como toda a embriaguez, aliena. Inaugura um movimento centrípeto que nos enclausura dentro de nós. Como a arte, intensifica a vida, mas apenas a vida larvar, a que vai de nós a nós mesmos, sem portas, janelas ou alçapões para o que nos transcende ou mesmo para o que nos rodeia. A alegria é egoísta e, nesse sentido, infantil. Esgota-se toda no invólucro em que se dilata, e nunca se projecta. Não se quer perpetuar ou repetir porque não tem vontade, é pura espontaneidade. O seu legado é o tempo que subtraímos à atenção e à vigília. É míope. Falta-lhe lucidez. Aí, contudo, a sua força: não é controlável nem assimilável. Aí o seu potencial revolucionário: não reconhece autoridade. Tão-só, não sendo motivada por nenhuma ideia, não tendo nenhuma esperança, basta-lhe ser. Como as pedras. Como Deus. Muito pouco, quase nada. Como tudo o que é humano.
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
Fome (revisited)
me mantive
pela fome.
Ela me revigorava,
nela achava a minha força
e a minha distinção.
Agora,
sacio-me
no remorso:
que abundância,
que fastio,
este sabor a terra,
a larva,
a decomposição.
Somente,
faço da indiferença
o meu vomitório.
sábado, 7 de setembro de 2024
As Flores do Mal
Também fucei nas suas grandes corolas, cativo da virulência do seu néctar. E quanto mais fundo fuçava, quanto mais fundo escavava, mais o seu segredo se ocultava por trás da seiva cada vez mais abundante, cada vez mais espessa, que o seu âmago inviolado segregava — inundando-me o rosto, escorrendo-me pelo queixo, entorpecendo-me os lábios e dispondo-me a procurar no crime a pacificação. As suas pétalas não têm viço, nenhum sol as enrubesceu. A elas, imolou a beleza todas as suas virtudes, e todas as fogueiras só aspiram à sua carne incombustível. Não têm espinhos, mas se as tentas colher, enredam-se umas nas outras, misturam os seus sabores e revelam-se os segredos que te recusaram, enquanto tu, excluído de tão angustiante liturgia, privado de tão aflitivo repasto, paralisado diante de tão impenetrável floresta, seguras com as forças que te restam a gadanha impotente, que viras contra ti.
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Judas
Judas, invejo a tua figueira e o teu mau nome. Invejo os vitupérios que te lançam e te enchem de uma saliva tão quente e tão humana, dessa humanidade que já nem cuidamos desprezar. Invejo o bafo das feras que te cobiçam a carne e cuja fome também conheci e nunca soube saciar. Invejo os escarros que te untam o cabelo para gáudio das varejeiras que ali se vêm acoitar. E invejo sobretudo o teu pecúlio: as tuas trinta moedas. Trinta moedas de ouro, de prata, de cobre ou de latão, qualquer metal corruptível que me sobrevivesse. Com elas, compraria o seu último beijo. E mais ninguém depois de mim o beijaria.
quarta-feira, 12 de julho de 2023
Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho APE/CML 2022
quarta-feira, 31 de maio de 2023
Iluminações
domingo, 23 de abril de 2023
Canção Errónea
terça-feira, 7 de fevereiro de 2023
Romanças sem Palavras
III
Como chove na cidade;
Que languidez invade
Meu pobre coração?
Oh, doce som da chuva
No chão e no telhado!
Para vencer o enfado
Oh, o canto da chuva!
Um choro sem razão
Quê? Não há traição?...
É luto sem razão.
segunda-feira, 7 de novembro de 2022
Uma Temporada no Inferno
Ódio à Poesia ou o
Silêncio de Rimbaud
Nota à margem de uma
tradução
A minha vida mude-a Deus ou finde-a…
Fernando Pessoa
Dezanove anos é tempo mais do que
suficiente para mudar a vida. Talvez seja até demasiado tempo. Para tanto, tanto
seria escusado. E se então se acorda dentro da mesma, supérflua vida, com a
mesma, supérflua vida por viver toda uma longa, indecorosa vida — que fazer? Já
se atravessou o Inferno, já se avistou um ou outro cometa, já se exercitou este
e aquele poder sobrenatural, já se profetizou esta e aquela ocorrida desgraça, até
já se fez a experiência do divino (afinal, uma pequena decepção). Dezanove anos
e tudo feito, tudo visto, tudo vivido dentro da mesma, insípida vida. Dezanove
demorados anos. É quanto basta. E então — que fazer?
Palmilhe-se o mundo, o sempre
mesmo mundo. Vá-se a pé de um lugar para o outro, suba-se as montanhas nevosas
com o farrapo das roupas e o puído cachimbo da infância, pernoite-se ao luar, sob
a cálida emanação dos pólos, sugue-se a avara sopa dos mosteiros, libe-se a
peçonha das amoras regurgitada pelos corvos no derradeiro estertor da sua opulenta
envergadura, coza-se a cicuta dos caminhos em águas morbosas extraídas de poços
secos. Aliste-se então num exército com vista à grande honra da deserção,
embarque-se nos grandes navios do século, conheça-se o mar já antes adivinhado (e,
afinal, outra pequena decepção — na infância é que tudo é imenso), solte-se
imprecações ao luzeiro de um fogo de santelmo e desemboque-se, por fim, no Corno
de África. Somália, Etiópia, o deserto. Qualquer lugar é bom para se guardar o
nosso grande, o nosso rude, o nosso fero silêncio. Sim. Dezanove anos é tempo
mais do que suficiente para mudar a vida. Quem o não consiga, que se cale para
sempre. Ou fale e se cubra de ridículo. Felizes os que sabem capitular antes de
se tornarem eloquentes.
Rimbaud esperou dezanove longos
anos. O amor por reinventar, a revolta por eclodir. Tinha dezanove anos. Disse
quem era, ao que tinha vindo e como falhara. Descreveu o Inferno e deu-lhe o
seu verdadeiro nome: esperança. E depois calou-se.
Rimbaud não foi precoce, nós é
que somos tardios. E eloquentes. Muito para lá do nosso tempo. É por isso que
não somos Rimbaud.
João Moita