domingo, 1 de junho de 2025

Março

Março já vai bem avançado. Somos sugados não sei para que precipício. A nossa inacção não logra deter o mundo. Pelo contrário, sem sentirmos a vertigem, tolhidos de anemia, praticamente afásicos, nem damos pela aceleração. O Inverno teima em não ceder. Tem chovido o que deve e as abertas são as esperadas. A tristeza e a solidão alastram como metástases. Sou este despropósito. Gastei os sonhos e as aspirações. Perdi as obsessões. Despromovi as paixões. Sou um ser deflaccionado. Já nada me entusiasma e já nada espero. A inteligência regrediu, a memória minguou, o palato secou. Vulgarizei-me e não sei viver vulgarmente. Estou só e não quero ninguém. Nada nem ninguém. Amanhã é outro dia. Algo prossegue subterraneamente. Je est un autre.

sábado, 31 de maio de 2025

Escrever

Tão difícil escrever. As palavras vêm a conta-gotas, represadas. Como uma ampulheta de mil grãos de areia destinada a contabilizar a eternidade. Depois, um grão maior entope o mecanismo. Não quer sair. Agito, rodo, viro e reviro a ampulheta, mas o grão não sai. Os outros acumulam-se atrás, aguardam a sua vez, hesitam em adiantar-se, misturam-se, saem da ordem. Então pouso a ampulheta e desisto de medir o tempo. Por falta de tempo. — Pudesse abrir as comportas, deixar sair tudo de roldão e tudo estar certo e no seu devido lugar! Então ainda haveria tempo.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Farol

Arderam todas as fogueiras, consumiram-se todas as brasas, dispersaram-se todas as cinzas. Terra queimada, nenhum combustível. — E vagueia ainda esta ardência pelo mundo? Que podes inflamar? Que esperas dessa tua perpétua incineração? Deixa que se apague lentamente a tua chama.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

terça-feira, 27 de maio de 2025

Que Túmulo em Que Talhão (revisited)


Tive a felicidade de poder rever a minha vila com olhos virgens. Foi uma bênção e uma sagração. Depois, voltou-se-me a gastar. Mas, por uns meses, ela apareceu-me como no sétimo dia da Criação. Tudo era estranheza e sobressalto. Eu era eu sem o que lá tinha sido. Não um estrangeiro, mas um filho da terra acabado de nascer, atirado para o Paraíso com tudo o que lá reluzia ou chamuscava, sem conhecimento de outro lugar ou de outro tempo. A criança que fui era contemporânea do adulto que estava a ser. Plácida planície sem constrições, tudo aberto a perder de vista: ao fundo, a intuição de umas montanhas, Serra d’Aire, Serra da Estrela, os Pirenéus, os Himalaias. Céus altos e vastidão. Naquele cenário, como admitir ser compelido por uma ideia, uma paixão, uma qualquer adesão, uma qualquer autoridade? Sabendo que depois da distância há mais distância? Horizonte tão inacessível que convidava à inacção. Se tivesse esperança de alcançar, esta tolher-me-ia os pés, e então lembrar-me-ia de tudo e tudo perderia o encanto. Por uns meses, fui feliz na minha terra. E só depois o soube.


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Alegria

 

A alegria exalta e inebria. Como toda a embriaguez, aliena. Inaugura um movimento centrípeto que nos enclausura dentro de nós. Como a arte, intensifica a vida, mas apenas a vida larvar, a que vai de nós a nós mesmos, sem portas, janelas ou alçapões para o que nos transcende ou mesmo para o que nos rodeia. A alegria é egoísta e, nesse sentido, infantil. Esgota-se toda no invólucro em que se dilata, e nunca se projecta. Não se quer perpetuar ou repetir porque não tem vontade, é pura espontaneidade. O seu legado é o tempo que subtraímos à atenção e à vigília. É míope. Falta-lhe lucidez. Aí, contudo, a sua força: não é controlável nem assimilável. Aí o seu potencial revolucionário: não reconhece autoridade. Tão-só, não sendo motivada por nenhuma ideia, não tendo nenhuma esperança, basta-lhe ser. Como as pedras. Como Deus. Muito pouco, quase nada. Como tudo o que é humano.