Uma questão que perpassa o livro de Manuel Gusmão que colige os ensaios que o poeta escreveu ao longo de várias décadas de investigação sobre o fenómeno poético, e que este ano foi dado à estampa sob o título Palimpsesto & Tatuagem, é a da posição da poesia no quadro alargado das potencialidades da linguagem humana. O autor recusa veementemente a ideia de que a poesia efectuaria um desvio às formulações da linguagem convencional, apresentando uma língua segunda dentro da língua primeira, em cujo reduto se alicerçaria a essência da poesia. Esta ideia tem a sua génese nas investigações linguísticas levadas a cabo pelos formalistas russos no início do séc. XX, com particular incidência no conceito de Jakobson da função poética da linguagem, que se oporia às funções referencial, emotiva, conativa, fática e metalinguística. No âmbito do acto comunicativo, a função poética da linguagem ocorreria quando a tónica do discurso incidisse na mensagem, isto é, na capacidade dos vocábulos de gerarem referentes que deles dependessem imediatamente e para eles remetessem, por oposição à enunciação com a tónica em cada um dos pólos emissores e receptores do discurso. A linguagem poética seria aquela que se eximisse à quotidianidade dos actos de discurso que se firmam e são suporte de acções para os quais são convocados mas que lhes são extrínsecos, estando por isso ao dispor dos mecanismos de alienação social cristalizados em formas de recorrência discursiva.
No seu conjunto, os ensaios de Manuel Gusmão rejeitam esta ideia de essencialidade da linguagem poética, apresentando em alternativa o conceito de «Poesia enquanto linguagem em estado de nascimento». Não é porque a linguagem poética funda uma zona contígua à da linguagem comum que ela se pode libertar de toda a carga ideológica ou significativa, afirmação difícil de compreender, uma vez que um desvio implica uma mudança de sentido mas não a transformação radical do que se é, mas antes porque a linguagem poética repete o movimento do nascimento da linguagem, apresentando-a livre da carga que o uso lhe traz.
Para ajudar a esclarecer este conceito de linguagem em estado de nascimento, Manuel Gusmão salienta o carácter utópico da linguagem. A u-topia da linguagem deriva da faculdade que esta tem de «fazer um uso infinito de recursos finitos» (p. 170), isto é, da imprevisibilidade do acontecer linguístico que remete cada acto de linguagem, ou pelo menos o acto de linguagem com intenção literária, para um não-lugar que devém lugar quando concretizado em discurso. Não se trata de um regresso à origem da linguagem, esse momento mítico em que o homem conquistou o mundo para si de uma vez para sempre ao atribuir nomes aos objectos, mas do reconhecimento de uma «origem perpétua» da linguagem, que nunca pára de nascer e de «refazer as imagens do mundo pela alteração da sua topologia, de reinventar o amor, de mudar a vida, ou mesmo de produzir as várias vidas que são devidas a um mortal» (p. 183). Vemos, assim, a ligação perene entre poesia e intuição do mundo pelos homens, sempre condicionada pelas possibilidades experimentadas da linguagem. A poesia permite novas intuições e, logo, novos mundos, novas realidades e, sobretudo, novas liberdades; ela é, portanto, a «ilusão necessária do [nosso] auto-engendramento» (idem). Nesta medida, a poesia afirma-se como «construção antropológica», em que o devir outro do poeta (o nosso autor segue neste passo Rimbaud) permite criar novas formas de vida humana, colocando-nos num plano exotópico à nossa percepção de tempo, espaço e cultura, plano que, segundo Bakthine, é o único que possibilita a compreensão de uma totalidade (p. 186-7).
Ao inscrever uma singularidade no «comum», valorizando a «possibilidade de singularização” (p. 16) contida nos recursos infinitos da linguagem, ao arrancar uma forma assinada a uma forma neutra preexistente, o poeta «põe a língua a funcionar» (p. 15), operando uma génese continuada da linguagem. Isto é, o mesmo vocábulo terá tantos nascimentos quantas actualizações lhe forem concedidas pelo fazer poético.
Desenraizada da concepção de uma suposta essencialidade, nem por isso podemos afirmar, como se torna corriqueiro, que tudo pode ser poesia. Os detractores daquilo a que eles próprios gostam de chamar «poesia pura» não podem escamotear que, sendo a poesia a concretização de uma possibilidade da linguagem, não deixa também de estar dependente de uma disposição particular para fazer funcionar a língua, trazendo à colação o espanto pelo mundo que agora, escrito no poema, se diz pela primeira vez. A recusa em confiar na linguagem acarreta a «impossibilidade de conhecer e de se (re)conhecer; a impossibilidade de viver e de amar (…), a impossibilidade de aceitar o corpo próprio, assim como o pavor da morte, em suma, a dificuldade em aceitar a vida que é dada viver» (p. 254). É o estranhamento, mais do que o lamento pela falência da Verdade, o melhor indicador de estarmos na presença de uma língua que nasce para cantar o mundo e engendrar o amor.
No seu conjunto, os ensaios de Manuel Gusmão rejeitam esta ideia de essencialidade da linguagem poética, apresentando em alternativa o conceito de «Poesia enquanto linguagem em estado de nascimento». Não é porque a linguagem poética funda uma zona contígua à da linguagem comum que ela se pode libertar de toda a carga ideológica ou significativa, afirmação difícil de compreender, uma vez que um desvio implica uma mudança de sentido mas não a transformação radical do que se é, mas antes porque a linguagem poética repete o movimento do nascimento da linguagem, apresentando-a livre da carga que o uso lhe traz.
Para ajudar a esclarecer este conceito de linguagem em estado de nascimento, Manuel Gusmão salienta o carácter utópico da linguagem. A u-topia da linguagem deriva da faculdade que esta tem de «fazer um uso infinito de recursos finitos» (p. 170), isto é, da imprevisibilidade do acontecer linguístico que remete cada acto de linguagem, ou pelo menos o acto de linguagem com intenção literária, para um não-lugar que devém lugar quando concretizado em discurso. Não se trata de um regresso à origem da linguagem, esse momento mítico em que o homem conquistou o mundo para si de uma vez para sempre ao atribuir nomes aos objectos, mas do reconhecimento de uma «origem perpétua» da linguagem, que nunca pára de nascer e de «refazer as imagens do mundo pela alteração da sua topologia, de reinventar o amor, de mudar a vida, ou mesmo de produzir as várias vidas que são devidas a um mortal» (p. 183). Vemos, assim, a ligação perene entre poesia e intuição do mundo pelos homens, sempre condicionada pelas possibilidades experimentadas da linguagem. A poesia permite novas intuições e, logo, novos mundos, novas realidades e, sobretudo, novas liberdades; ela é, portanto, a «ilusão necessária do [nosso] auto-engendramento» (idem). Nesta medida, a poesia afirma-se como «construção antropológica», em que o devir outro do poeta (o nosso autor segue neste passo Rimbaud) permite criar novas formas de vida humana, colocando-nos num plano exotópico à nossa percepção de tempo, espaço e cultura, plano que, segundo Bakthine, é o único que possibilita a compreensão de uma totalidade (p. 186-7).
Ao inscrever uma singularidade no «comum», valorizando a «possibilidade de singularização” (p. 16) contida nos recursos infinitos da linguagem, ao arrancar uma forma assinada a uma forma neutra preexistente, o poeta «põe a língua a funcionar» (p. 15), operando uma génese continuada da linguagem. Isto é, o mesmo vocábulo terá tantos nascimentos quantas actualizações lhe forem concedidas pelo fazer poético.
Desenraizada da concepção de uma suposta essencialidade, nem por isso podemos afirmar, como se torna corriqueiro, que tudo pode ser poesia. Os detractores daquilo a que eles próprios gostam de chamar «poesia pura» não podem escamotear que, sendo a poesia a concretização de uma possibilidade da linguagem, não deixa também de estar dependente de uma disposição particular para fazer funcionar a língua, trazendo à colação o espanto pelo mundo que agora, escrito no poema, se diz pela primeira vez. A recusa em confiar na linguagem acarreta a «impossibilidade de conhecer e de se (re)conhecer; a impossibilidade de viver e de amar (…), a impossibilidade de aceitar o corpo próprio, assim como o pavor da morte, em suma, a dificuldade em aceitar a vida que é dada viver» (p. 254). É o estranhamento, mais do que o lamento pela falência da Verdade, o melhor indicador de estarmos na presença de uma língua que nasce para cantar o mundo e engendrar o amor.
1 comentário:
Poderia fazer uso dos recursos finitos que se encerram em seu texto para levantar infinitas reflexões. Cada palavra que li foi como uma porta para todo o universo. Somos limitados, porém, e me contentarei em dizer que "suas ideias" (acho que ideias são de todos e de ninguém, mas teimo em usar o possessivo) e a forma com que as expõe muito me agradaram. Meus cumprimentos!
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