Ontem colhi papoilas. Escolhi dentre as mais vermelhas aquelas que menos gemiam ao vento da tarde e arranquei-as pelo caule. Coloquei-as numa jarra junto à janela onde o sol bate de manhã. Deixei os estores abertos e uma vela apagada. As papoilas eram o silêncio da casa quando eu cantava, e tantas vezes me dobraram sobre a página para que me desfolhasse. Às vezes penso que me vou erguer, mas é só o sangue eriçado. Toda a gente pensa que me distraio. As papoilas estão no vértice da casa à espera de Junho. Eu sou o mês do clamor. Toda a gente pensa que me baralho. A casa engole as papoilas com o sangue quando danço e nem os cepos baloiçam. Minha mãe tem um chapéu e uma sombrinha azul e anda por entre as papoilas a indagar as borboletas. Às vezes penso que me vou erguer, mas é só o seu olhar absorto em mim. Bebo água até não ter mais sede. As páginas tingem-se e nem eu amo a minha saliva doce. Toda a gente pensa que me arrepio quando me estendo na erva e o vento da tarde resfria a terra. Minha mãe não sabe que fico transido e que me ergo sob o sangue que me despenha. Ontem colhi papoilas. Hoje penso que vou morrer.
2 comentários:
muito bom, joão. obrigado
Que palavras tão profundas e de sentido tão intenso. As maiores felicidades!
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