terça-feira, 7 de janeiro de 2020

COLÓQUIO/Letras n.º 203


Participo no n.º 203 (jan/2020) da revista Colóquio/Letras com o ensaio «Representações sacrificiais na Tetralogia Lusitana de Almeida Faria», cujos primeiros parágrafos reproduzo abaixo:

«A saga da família alentejana que Almeida Faria põe em cena na sua Tetralogia Lusitana parece conter, pelo menos numa primeira leitura, todos os requisitos para se instituir como alegoria por excelência do mecanismo de bode expiatório postulado por René Girard, o filósofo e antropólogo estruturalista francês. Representantes de uma ordem caduca e agonizante nas vésperas de uma revolução que se imagina regeneradora, os membros desta família apresentam os traços característicos das vítimas do fenómeno que, segundo o pensador cuja teoria porei à prova neste ensaio, é o pilar fundacional de toda a civilização e o evento constitutivo de todo o fenómeno religioso. 
A generalizada violência pré-civilizacional, ou a típica das encruzilhadas históricas, alicerçada no carácter fundamentalmente mimético do desejo, propiciador da hostilidade recíproca entre rivais, seria não só eliminada como transformada em móbil conciliatório, ao ser canalizada para uma vítima sacrificial, escolhida não necessariamente pela sua culpabilidade, mas por apresentar visíveis sinais vitimários. A sua imolação pelo conjunto da comunidade suscitaria uma nova paz, fundada na memória partilhada do crime coletivo que teria expurgado a sociedade do seu elemento poluente, agora transformado em tabu, primeiro passo na via da sacralização. «É sempre a má reciprocidade», diz Girard, «demasiado rápida e visível, que uniformiza os comportamentos nas grandes crises sociais suscetíveis de desencadear as perseguições coletivas» (Girard: 49; minha tradução). E acrescenta: «Para que os todos os perseguidores sejam animados pela mesma fé no poder maléfico da sua vítima, é preciso que esta polarize efetivamente todas as suspeitas, todas as tensões e todas as represálias que corrompem essas relações» (ibid.: 65). Assim, o que a maior parte dos mitos mostra, afinal, é um «verdadeiro regresso à ordem comprometida pela crise, mais frequentemente ainda o nascimento de uma nova ordem, na união religiosa da comunidade reanimada pela prova que acaba de suportar» (ibid.: 65-66).
Qualquer revolução, seja ela política, económica ou social, constitui terreno ideal para a proliferação destes mecanismos sacrificiais. É pois com naturalidade que Almeida Faria, sobretudo nos três primeiros romances da Tetralogia Lusitana, os que dizem respeito aos dias que precedem e se sucedem à Revolução dos Cravos, faz desfilar diante dos olhos do leitor uma série de acontecimentos que relevam da violência coletiva projetada sobre determinados alvos escolhidos segundo os critérios de vitimização descritos por René Girard em Le Bouc émissaire. [...]»


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