segunda-feira, 7 de março de 2016

Adolfo García Ortega (I)


EM TEMPOS DE MISÉRIA

                                               para Eduardo

Eu sei que viver se tornou difícil
e é como o medo,
presença insuspeita na paisagem,
ridículo episódio que convence,
obscuro, em insalubre tédio.

Mas sei também dos seus sabores
leves factos apenas, sem trágico balanço,
sem o ditado das horas
passadas na fronteira imprecisa
com a morte – não temos o hábito
de nomeá-la em vida.

                                Quer dizer
que não é fácil viver familiarmente, e aprender
a ler em geral o sentimento
dá mais trabalho
do que se pensa, por fantasiado.

Assim, enquanto eu penso e observo
essa parte da minha história
que não é tempo propício e me resigno
ao hábito de suportar com feridas
o sereno desespero que dá a lucidez,
outros factos
de repente acomodam-se perto,
como a luz de inverno,
uma tarde com varanda
e teia-de-aranha na lâmpada,
ou o aroma do tabaco por um momento
já vivido em felicidade.

                                  E os versos,
os versos decimais
de algum poeta afim em amor carnal
– porque agora o recordo: as minhas amantes dotaram-me
de muitos dos meus livros mais queridos.

Razões tenho para crer
que a vida dá nozes às crianças
– como diria Catulo –
e essa carga de demasiada verdade
com que costumamos encontrar-nos a nós mesmos
vive oculta ali onde está o coração
dos amigos perduráveis, para salvar-nos.

Não será que afinal, em tempos de miséria,
de sorte tão duvidosa
como a que partilhamos
                                  a sós,
não nos visita a amada companhia
do final que não chegamos a ver nunca,
esse saber em doce temor
de que levar um tiro também
é uma maneira de viver?


De Oscuras razones, 1988.

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