quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Texto de Pablo Javier Pérez López sobre Oração Fria

Oração Fria de Antonio Gamoneda
Selecção, tradução, introdução e posfácio de João Moita. Assírio & Alvim, 2013.


[Texto originalmente publicado na Enfermaria 6]

A arte de traduzir é, simplesmente, uma das mais elevadas e secretas. Poucos humanos conseguem levar poemas para uma outra língua com essa estranha e árdua fidelidade que reproduz a ebriedade, o ritmo, e o pensar cosido à música da vida da qual nasce o poema. Mais difícil ainda frente ao sentir popular, é fazer viajar a poesia para uma língua aparentemente familiar ou próxima. Mudar, verbo escolhido por Helberto Helder para este facto sagrado que sempre convoca a apropriação de outra voz e a recriação oral e escrita do poema, um verbo que, Gamoneda aceitou e recebeu com gosto. Sempre tem que ser um poeta a mudar a voz de outro poeta e sempre que isto acontece nota-se logo a partir do início da leitura.
E é neste caso, o labor de João Moita que atesta da validade de todas estas intuições: não só a escolha de poemas de Moita é feliz como a tradução aparentemente mais fiel e menos mudada parece apontar uma facilidade de trabalho que talvez na verdade não exista. Talvez por uma das qualidades essenciais da poesia deste autor espanhol ser a própria musicalidade e a simplicidade do verso, facilite e até explique em grande medida a magnífica e bem-sucedida antologia portuguesa do autor.
Como dizia, a apresentação da vida e da obra do autor feitas pelo antologista são muito pertinentes e oportunas para o leitor português. A antologia que tem como base uma outra recolha aparentemente definitiva feita pelo autor (Esta luz. Poesía reunida (1947-2004), Galaxia Gutenberg, 2004) é uma boa oportunidade para estabelecer um diálogo panorâmico com esta voz imprescindível pela autenticidade da sua voz ímpar, e onde a musicalidade e o pensar poético se encontram absolutamente fundidos.
É preciso notar também que a antologia efectuada por João Moita acrescenta cinco poemas presentes no último livro, até ao momento, de Antonio Gamoneda: Canción Errónea. Facto que considero deveras importante por se tratar de um livro que no meu entender supõe um píncaro essencial da obra do autor, uma espécie de planalto a partir do qual a voz poética olha o passado e a ausência futura. A inclusão de alguns poemas deste livro facilita, melhora e acolhe uma necessária impregnação da obra do autor na perspectiva do tempo. Canción Errónea é um livro que supõe a maturidade total da voz e a sabedoria poética, onde alguns dos poemas fazem arrepiar pela profundidade e clareza da voz na perspectiva deste tempo ou desta morte vivida que é sempre a poesia: [...]Amo este corpo velho e a substância/da sua miséria clínica. /O esquecimento / dissolve a matéria pensante  /diante dos grandes vidros / da mentira. /Já /tudo está dirimido. / Não há causa em mim. Em mim não há /mais que cansaço e /um extravio antigo: /Ir /Da inexistência /à inexistência. /É /um sonho. /um sonho vazio /mas acontece. /Eu amo /Tudo quanto cri /vivente em mim. /Amei as grandes /mãos da minha mãe e /aquele metal antigo /dos seus olhos e aquele /cansaço cheio de luz /e de frio. /Desprezo /a eternidade. /Vivi /e não sei porquê. /Agora hei-de amar a minha própria morte /e não sei morrer. /Que equívoco.
Poética vital, poesia vital que intensifica a vida. Assunção do mistério, diálogo com o invisível, reconhecimento do rosto na memória, consciência e afirmação da presença na ausência futura, vivência do corpo informe do símbolo, criação da beleza no impossível, são elementos essenciais de uma poética que resulta já imprescindível no nosso confuso tempo de poéticas barrocas, instranscendentes, superficiais e pacatas, cheias de um sentir quotidiano situado fora da imanência do sagrado que a vida impõe. Só na humildade, na aceitação profunda do símbolo poético pode nascer uma poesia autêntica e intemporal, onde nenhuma palavra é decorativa senão essencial, palabra esencial en el tiempo, definição da poesia de Antonio Machado que bem honra a escrita de Antonio Gamoneda. Quem queira penetrar no segredo da poesia que foge do acidental, quem queira fugir da poesia que nasce da experiencia passageira e intrascendente, acidental, deverá ler estes versos.
Estamos face a um pensar poético que nasce da coragem de querer a beleza, de conquistar a beleza que sabe que A beleza não é /um lugar aonde os / cobardes vão parar. Um pensamento poético que renuncia ao pensar que condena à inexistência na dor da lucidez, esse lugar tão longínquo da verdadeira luz (Vejo a vida no centro da luz; já sei / que a beleza não precisa ser pensada) e que funde absolutamente a vida e a poesia até fazer do pensamento, música, (Agora é música meu pensamento) que esconde uma sabedoria não pensada, mas sim revelada. A voz deste poeta nota-se autêntica desde o início da leitura quando sentimos a companhia e o silêncio, a voz do poema e do poeta que está dentro e fora do nosso coração. Um pensar poético que não renuncia ao mistério, que se funda no mistério da nossa própria existência mas ama profundamente o mundo: Sei que o único canto, /o único digno dos cantos antigos, /a única poesia, /e a que cala e ainda ama este mundo, /esta solidão que enlouquece e despoja.
Uma poesia que nasce do imenso sofrimento (Não é bom que haja tanto sofrimento) que é inevitável no verdadeiro poeta mas que ao mesmo tempo constitui uma sabedoria poética baseada na ausência de medo e esperança (Não tenho medo nem esperança. De um hotel exterior ao destino vejo uma praia negra e, ao longe, as grandes pálpebras de uma cidade cuja dor não me diz respeito.Venho do metileno e do amor: tive frio debaixo dos tubos da morte. Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.), onde a ebriedade da melancolia nasce duma memória maldita e amarela e cheia de esquecimento. Poesia que se salva na errância absurda de ser onde nasce e agoniza o nosso coração. (Vamos/ do visível ao invisível/ Nessa errância descansa o nosso coração. [...] És a minha doença e tu salvas-me).
Mas há outro elemento essencial da poética de Gamoneda que está também bem presente nesta antologia portuguesa. A poesia que o leitor pode encontrar neste livro é uma poesia feita de 'revelação', consciência poética do véu, poderiamos dizer. “En lo desconocido, en lo aún no nombrado, reside la causa del lenguaje creador, del lenguaje de revelación”, costuma afirmar Gamoneda. No fim, a poesia será neste poetizar apresentada como 'dando ser ao ser'. “É o desafio de dar ser ao ser” tal como lemos no posfácio. E essa revelação acontece também na linguagem concebida como esquecimento:  “O esquecimento como atenuador dos significados e, portanto, das convenções [...] na iminência de ultrapassar a charada da linguagem. E portanto de a recomeçar”, escreve igualmente João Moita nesse texto final. Transmutação da dor e da morte em prazer e liberdade: Eis aqui a busca essencial desta poética.
O que também podemos ler nesta versão portuguesa de João Moita é uma poética profundamente invulgar que não se pode colocar no seio de geração nenhuma. Trata-se de uma poesia onde a candura, de que falávamos a início, mostra o ritmo de uma memória que reflecte dentro da musicalidade do próprio tempo habitado, onde a memória, ainda que ferida de morte pelo sofrimento, se enche de coragem para a criação e contemplação serena da beleza ainda no frio da morte contemplada, o frio de quem conhece a pele de um rosto ou um poema verdadeiro, de quem guarda em segredo o calor autêntico da vida.
O título desta antologia justifica-se em termos gerais pois descreve com clareza e verdade mas talvez possa levar ao engano o leitor pela proximidade com o Livro do Frio, publicado já há 15 anos. Existem algumas gralhas nos títulos castelhanos que  maculam levemente o prólogo mas estas considerações nada mudam a importância e qualidade do trabalho efectuado nesta nova tradução. No fim de contas, o livro resulta imprescindível para aqueles leitores que estão próximos do pensar poético e da poesia que sem ser intelectual pensa no ritmo da própria vida. Embora alguns livros de Antonio Gamoneda tenham sido traduzidos já para português como Livro do frio, (trad. José Bento, Assírio & Alvim, 1999), Ardem as perdas (trad. de Jorge Melícias, Quasi, 2004) e Descrição da mentira, (trad. de Vasco Gato, Quasi, 2007) este livro parece configurar-se como a porta de entrada mais pertinente à obra do autor espanhol num sentido mais abrangente. Ao mesmo tempo, assinala, talvez, a necessidade de uma tradução completa que permita um diálogo mais profundo com as poéticas portuguesas  pelas quais o autor espanhol tem declarado constantemente o seu respeito mais genuíno. Dito por outras palavras, e ao acabar a leitura, o leitor fica com a necessidade de conhecer mais e melhor a obra do poeta.
Pablo Javier Pérez López

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