Oração Fria de Antonio Gamoneda
Selecção, tradução, introdução e posfácio de João Moita. Assírio & Alvim, 2013.
[Texto originalmente publicado na Enfermaria 6]
Selecção, tradução, introdução e posfácio de João Moita. Assírio & Alvim, 2013.
[Texto originalmente publicado na Enfermaria 6]
A
arte de traduzir é, simplesmente, uma das mais elevadas e secretas.
Poucos humanos conseguem levar poemas para uma outra língua com essa
estranha e árdua fidelidade que reproduz a ebriedade, o ritmo, e o
pensar cosido à música da vida da qual nasce o poema. Mais difícil ainda
frente ao sentir popular, é fazer viajar a poesia para uma língua
aparentemente familiar ou próxima. Mudar, verbo escolhido por
Helberto Helder para este facto sagrado que sempre convoca a apropriação
de outra voz e a recriação oral e escrita do poema, um verbo que,
Gamoneda aceitou e recebeu com gosto. Sempre tem que ser um poeta a
mudar a voz de outro poeta e sempre que isto acontece nota-se logo a
partir do início da leitura.
E é neste caso, o labor de João Moita que atesta da validade de todas
estas intuições: não só a escolha de poemas de Moita é feliz como a
tradução aparentemente mais fiel e menos mudada parece apontar uma
facilidade de trabalho que talvez na verdade não exista. Talvez por uma
das qualidades essenciais da poesia deste autor espanhol ser a própria
musicalidade e a simplicidade do verso, facilite e até explique em
grande medida a magnífica e bem-sucedida antologia portuguesa do autor.
Como dizia, a apresentação da vida e da obra do autor feitas pelo
antologista são muito pertinentes e oportunas para o leitor português. A
antologia que tem como base uma outra recolha aparentemente definitiva
feita pelo autor (Esta luz. Poesía reunida (1947-2004),
Galaxia Gutenberg, 2004) é uma boa oportunidade para estabelecer um
diálogo panorâmico com esta voz imprescindível pela autenticidade da sua
voz ímpar, e onde a musicalidade e o pensar poético se encontram
absolutamente fundidos.
É
preciso notar também que a antologia efectuada por João Moita
acrescenta cinco poemas presentes no último livro, até ao momento, de
Antonio Gamoneda: Canción Errónea. Facto que considero deveras
importante por se tratar de um livro que no meu entender supõe um
píncaro essencial da obra do autor, uma espécie de planalto a partir do
qual a voz poética olha o passado e a ausência futura. A inclusão de
alguns poemas deste livro facilita, melhora e acolhe uma necessária
impregnação da obra do autor na perspectiva do tempo. Canción Errónea
é um livro que supõe a maturidade total da voz e a sabedoria poética,
onde alguns dos poemas fazem arrepiar pela profundidade e clareza da voz
na perspectiva deste tempo ou desta morte vivida que é sempre a poesia:
[...]Amo este corpo velho e a substância/da sua miséria clínica. /O
esquecimento / dissolve a matéria pensante /diante dos grandes vidros /
da mentira. /Já /tudo está dirimido. / Não há causa em mim. Em mim não
há /mais que cansaço e /um extravio antigo: /Ir /Da inexistência /à
inexistência. /É /um sonho. /um sonho vazio /mas acontece. /Eu amo /Tudo
quanto cri /vivente em mim. /Amei as grandes /mãos da minha mãe e
/aquele metal antigo /dos seus olhos e aquele /cansaço cheio de luz /e
de frio. /Desprezo /a eternidade. /Vivi /e não sei porquê. /Agora hei-de
amar a minha própria morte /e não sei morrer. /Que equívoco.
Poética vital, poesia vital que intensifica a vida.
Assunção do mistério, diálogo com o invisível, reconhecimento do rosto
na memória, consciência e afirmação da presença na ausência futura,
vivência do corpo informe do símbolo, criação da beleza no impossível,
são elementos essenciais de uma poética que resulta já imprescindível no
nosso confuso tempo de poéticas barrocas, instranscendentes,
superficiais e pacatas, cheias de um sentir quotidiano situado fora da
imanência do sagrado que a vida impõe. Só na humildade, na aceitação
profunda do símbolo poético pode nascer uma poesia autêntica e
intemporal, onde nenhuma palavra é decorativa senão essencial, palabra esencial en el tiempo,
definição da poesia de Antonio Machado que bem honra a escrita de
Antonio Gamoneda. Quem queira penetrar no segredo da poesia que foge do
acidental, quem queira fugir da poesia que nasce da experiencia
passageira e intrascendente, acidental, deverá ler estes versos.
Estamos face a um pensar poético que nasce da coragem de querer a beleza, de conquistar a beleza que sabe que A beleza não é /um lugar aonde os / cobardes vão parar.
Um pensamento poético que renuncia ao pensar que condena à inexistência
na dor da lucidez, esse lugar tão longínquo da verdadeira luz (Vejo a vida no centro da luz; já sei / que a beleza não precisa ser pensada) e que funde absolutamente a vida e a poesia até fazer do pensamento, música, (Agora é música meu pensamento) que esconde uma sabedoria não pensada, mas sim revelada. A voz deste poeta nota-se autêntica desde o início da leitura quando sentimos a companhia e o silêncio, a voz do poema e do poeta que está dentro e fora do nosso coração.
Um pensar poético que não renuncia ao mistério, que se funda no
mistério da nossa própria existência mas ama profundamente o mundo: Sei
que o único canto, /o único digno dos cantos antigos, /a única poesia,
/e a que cala e ainda ama este mundo, /esta solidão que enlouquece e
despoja.
Uma poesia que nasce do imenso sofrimento (Não é bom que haja tanto sofrimento)
que é inevitável no verdadeiro poeta mas que ao mesmo tempo constitui
uma sabedoria poética baseada na ausência de medo e esperança (Não
tenho medo nem esperança. De um hotel exterior ao destino vejo uma praia
negra e, ao longe, as grandes pálpebras de uma cidade cuja dor não me
diz respeito.Venho do metileno e do amor: tive frio debaixo dos tubos da
morte. Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.), onde a ebriedade da melancolia nasce duma memória maldita e amarela e cheia de esquecimento. Poesia que se salva na errância absurda de ser onde nasce e agoniza o nosso coração. (Vamos/ do visível ao invisível/ Nessa errância descansa o nosso coração. [...] És a minha doença e tu salvas-me).
Mas há outro elemento essencial da poética de Gamoneda que está também bem presente nesta antologia portuguesa. A poesia que o leitor pode encontrar neste livro é uma poesia feita de 'revelação', consciência poética do véu, poderiamos dizer. “En
lo desconocido, en lo aún no nombrado, reside la causa del lenguaje
creador, del lenguaje de revelación”, costuma afirmar Gamoneda. No
fim, a poesia será neste poetizar apresentada como 'dando ser ao ser'.
“É o desafio de dar ser ao ser” tal como lemos no posfácio. E essa
revelação acontece também na linguagem concebida como esquecimento: “O
esquecimento como atenuador dos significados e, portanto, das convenções
[...] na iminência de ultrapassar a charada da linguagem. E portanto de
a recomeçar”, escreve igualmente João Moita nesse texto final.
Transmutação da dor e da morte em prazer e liberdade: Eis aqui a busca
essencial desta poética.
O que também podemos ler nesta versão portuguesa de João Moita é uma
poética profundamente invulgar que não se pode colocar no seio de
geração nenhuma. Trata-se de uma poesia onde a candura, de que falávamos
a início, mostra o ritmo de uma memória que reflecte dentro da
musicalidade do próprio tempo habitado, onde a memória, ainda que ferida
de morte pelo sofrimento, se enche de coragem para a criação e
contemplação serena da beleza ainda no frio da morte contemplada, o frio
de quem conhece a pele de um rosto ou um poema verdadeiro, de quem
guarda em segredo o calor autêntico da vida.
O título desta antologia justifica-se em termos gerais pois descreve
com clareza e verdade mas talvez possa levar ao engano o leitor pela
proximidade com o Livro do Frio,
publicado já há 15 anos. Existem algumas gralhas nos títulos
castelhanos que maculam levemente o prólogo mas estas considerações
nada mudam a importância e qualidade do trabalho efectuado nesta nova
tradução. No fim de contas, o livro resulta imprescindível para aqueles
leitores que estão próximos do pensar poético e da poesia que sem ser
intelectual pensa no ritmo da própria vida. Embora alguns livros de
Antonio Gamoneda tenham sido traduzidos já para português como Livro do frio, (trad. José Bento, Assírio & Alvim, 1999), Ardem as perdas (trad. de Jorge Melícias, Quasi, 2004) e Descrição da mentira, (trad. de Vasco
Gato, Quasi, 2007) este livro parece configurar-se como a porta de
entrada mais pertinente à obra do autor espanhol num sentido mais
abrangente. Ao mesmo tempo, assinala, talvez, a necessidade de uma
tradução completa que permita um diálogo mais profundo com as poéticas
portuguesas pelas quais o autor espanhol tem declarado constantemente o
seu respeito mais genuíno. Dito por outras palavras, e ao acabar a
leitura, o leitor fica com a necessidade de conhecer mais e melhor a
obra do poeta.
Pablo Javier Pérez López
Sem comentários:
Enviar um comentário