VI
«...Aquele que erra a meio da noite nas galerias de pedra para avaliar
os títulos de propriedade de um belo cometa; aquele que, entre duas guerras,
vigia a pureza de grandes lentes de cristal; aquele que se levanta antes do dia
para limpar as nascentes e põe termo a grandes epidemias; aquele que aplica
laca em alto mar com as suas filhas e as suas noras, e já bastava a cinza da
terra[1]...
«Aquele que elogia a demência nos grandes hospícios de gesso azul, e é
Domingo nos campos de centeio, à hora da grande cegueira; aquele que sobe aos
órgãos solitários à chegada dos exércitos; aquele que sonha com estranhas
latomias, e passa um pouco do meio-dia, à hora de grande viuvez; aquele que,
sob o vento de uma ilha rasa, desperta no meio do mar com o perfume árido de
uma pequena perpétua das areias; aquele que observa nos portos os braços das
mulheres de outra raça, e há um sabor a vetiver no perfume de axila da noite rasa,
e passa um pouco da meia-noite, à hora de grande opacidade; aquele cuja
respiração se une à respiração do mar enquanto dorme, e na mudança da maré, eis
que se volta na cama como um barco a virar de bordo...
«Aquele que pinta uma conhecença[2]
na frente dos mais altos promontórios, aquele que assinala com uma cruz branca
a face dos recifes; aquele que lava com um leite pobre as grandes casamatas de
sombra ao pé dos semáforos, e é um lugar de cinerárias e de entulho para
deleite do sábio; aquele que durante a época das chuvas vai viver com o pessoal
de pilotagem e de cabotagem – na casa do guardião de um templo morto no cabo da
península (e está sobre um espigão de pedra azul-parda, ou sobre a mesa alta de
grés vermelho); aquele que aprisiona sobre os mapas a rota fechada dos
ciclones; para quem se iluminam nas noites de inverno as grandes pistas
siderais; ou que contesta em sonhos muitas outras leis de transumância e de
derivação; aquele que procura, com a ponta da sonda, a argila vermelha dos
grandes fundos para modelar o rosto com que sonha; aquele que se oferece nos
portos para calibrar as bússolas das embarcações de recreio...
«Aquele que caminha pela terra à procura dos grandes pastos; que dá a
sua opinião, durante a viagem, acerca do tratamento de uma velha árvore; aquele
que sobe às torres de ferro, depois da tempestade, para dispersar esse cheiro a
crepe escuro dos fogos de sarça pela floresta; aquele que vigia, em lugares
estéreis, a saída das grandes linhas telegráficas; que conhece o abrigo e o
estribo de aportamento dos cabos submarinos; que, debaixo da cidade, num lugar
de ossuários e de esgotos (e são a própria crosta descascada da terra), cuida dos
instrumentos de leitura de puros sismos...
«Aquele que é responsável, em tempos de invasão, pelo regime das
águas, e que inspecciona os grandes vasos filtrantes desgastados pelas núpcias
das efémeras; aquele que, atrás das serralharias de ouro verde, defende dos
motins as grandes estufas fétidas do Jardim Botânico; as grandes Casas da
Moeda, das Longitudes e do Tabaco; e a Arrecadação dos Faróis, onde jazem as
fábulas e as lanternas; aquele que, em tempos de insurreição, faz a ronda pelos
grandes halls onde se esboroam, sob o vidro, as panóplias de bichos-folha e de
vanessas; e ilumina com a sua candeia as belas gamelas de lápis-lazúli, onde,
friável, a princesa de osso cravejada de ouro desce o curso dos séculos com os
seus cabelos de sisal; aquele que defende da passagem dos exércitos um híbrido
raríssimo de roseira brava dos Himalaias; aquele que financia do próprio bolso,
aquando das grandes bancarrotas do Estado, o luxo fosco das coudelarias, das
grandes coudelarias de tijolo fulvo sob a folhagem, como roseirais de rosas
vermelhas sob o arrulhos da tempestade, como belos gineceus cheios de príncipes
selvagens, de escuridão, de incenso e de substância varonil...
«Aquele que, em tempos de crise, é responsável pela guarda dos altos
paquetes confiscados nos meandros de um rio cor de iodo e de estrume (e sob o
limbo dos vitrais, nos grandes salões toldados de olvido, há uma luz de agave
até ao fim dos tempos e para sempre vigilante no mar); aquele que vagabundeia
com os maltrapilhos pelos estaleiros e pelos depósitos abandonados pela
multidão depois do lançamento de um grande casco que demorou três anos a
construir; aquele que tem por profissão a consignação dos navios; e aquele que
um dia descobre o perfume da sua alma no cavername de um veleiro novo; aquele que
monta a guarda ao equinócio na muralha das docas, no alto pente sonoro das
grandes barragens da montanha e nas grandes eclusas oceânicas; aquele que sente
que se exala subitamente todo o hálito incurável deste mundo no relento de
grandes silos e entrepostos de víveres coloniais, lá onde a especiaria e o bago
verde se dilatam com as luas de inverno como a criação no seu leito bafiento;
aquele que decreta o encerramento dos grandes congressos de orografia, de
climatologia, e é a hora de visitar o Arboreto e o Aquário e o bairro de
prostituição, as lapidarias de pedras preciosas e os adros dos grandes
convulsionários...
«Aquele que abre uma conta no banco para as investigações do espírito;
aquele que entra na arena da sua nova obra cheio de entusiasmo e durante três
dias ninguém a não ser a sua mãe vigia o seu silêncio, ninguém a não ser a mais
velha das criadas tem acesso aos seus aposentos; aquele que conduz o seu cavalo
às nascentes sem que ele próprio mate a sede; aquele que sonha nas selarias com
um perfume mais ardente que o da cera; aquele, como Babur[3],
que entre duas grandes acções viris veste a túnica do poeta para reverenciar a
frontaria de um belo terraço; aquele que se distrai durante a consagração de
uma nave, e há jarros no tímpano, como orelhas, murados para a acústica; aquele
que, em terra de mão-morta, deixa como herança o último cativeiro de
garças-reais, juntamente belas obras sobre montaria e falcoaria; aquele que negoceia
na cidade três grandes livros: almagestos, portulanos e bestiários; que se
interessa pelos acidentes de fonética, pela aliteração dos signos e pelas
grandes erosões da linguagem; que participa nos grandes debates de semântica;
que é uma autoridade nas matemáticas aplicadas e se compraz com a suputação das
datas para o calendário dos feriados móveis (a proporção áurea, a indicção
romana, a epacta e as grandes cartas dominicais); aquele que decide a
hierarquia das grandes agências da linguagem; aquele a quem são reveladas, num
lugar muito elevado, as grandes pedras lustradas pela insistência da chama...
«Esses são príncipes do exílio e não precisam do meu canto.»
Estrangeiro, em todas as praias deste mundo, sem audiência nem
testemunha, encosta ao ouvido do Poente uma concha sem memória:
Hóspede precário na orla das nossas cidades, jamais franquearás o
umbral dos Lloyds[4], onde a
tua palavra não tem valor e o teu ouro não tem título...
«Habitarei o meu nome», foi a tua resposta aos questionários do porto.
E sobre as mesas do cambista, nada que não seja dúbio tens para apresentar,
Como essas grandes moedas de ferro exumadas pelo relâmpago.
Saint-John Perse, Exil
- trad. minha
Saint-John Perse, Exil
- trad. minha
[1]
O autor refere-se aos laqueadores chineses, forçados a exercerem o seu ofício
no mar para evitarem as poeiras que o vento arrastava em terra. Sobre o
assunto, escreve a Joseph Conrad, em carta de 26 de Fevereiro de 1921:
«As últimas grandes
famílias de laqueadores chineses odiavam ter de viver no mar, ao largo de
Petchili, para se protegerem das poeiras do "vento amarelo". (Última
servidão imposta sobre o mar pelo habitat terrestre.)»
[2]
Termo da terminologia náutica que designa cada um dos acidentes costeiros
registados nas cartas de marear pelos quais se guiam os navegantes. Estes
acidentes incluem qualquer género de elevações, como rochedos, faróis, torres
de igrejas ou outras construções.
[3]
Zāhir ud-Dīn Mohammad (1483-1530), Imperador muçulmano da Ásia Central que
fundou a dinastia Mogol da Índia.
[4]
Famosa família de banqueiros ingleses cujo percursor fundou, em 1765, aquele
que é hoje conhecido por Lloyds Bank
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