sábado, 23 de abril de 2011

“A dor de conhecer”: aporias da modernidade em Fernando Pessoa e Saint-John Perse


Quando, em 1637, Descartes afirmava estar na posse de um método «através do qual me parece poder arranjar um modo de aumentar gradualmente o meu conhecimento, e de o elevar pouco a pouco ao mais alto que a mediocridade do meu espírito e curta duração da minha vida lhe permitirão atingir»[1], estava longe de adivinhar as repercussões que a recém-conquistada crença nas faculdades da razão humana vai ter até ao final do séc. XVIII, altura em que essa fé conhecerá os seus mais ardorosos profetas: Rousseau, que pela primeira vez absolve o homem do pecado original, inocentando a sua natureza e culpando a contingência para que se vê atirado, e Hegel, para quem a Verdade última seria uma conquista da razão dialéctica.
Porém, quando em pleno século XIX Auguste Comte reconhece a impossibilidade de o espírito humano «obter noções absolutas» e apela à renúncia da busca da «origem e destino do universo, e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para se entregar unicamente a descobrir, pelo uso do raciocínio e da observação, as suas leis efectivas, isto é, as relações invariáveis de sucessão e de semelhança»[2], estamos já a afastar-nos dos ideais racionalistas que durante dois séculos guiaram a cultura europeia quase em exclusividade e que terão talvez o seu maior apóstata em Sigmund Freud, que, em finais do século XIX e inícios do século XX, veio chamar a atenção para os fenómenos inconscientes da nossa actividade mental e para a falta de unidade da nossa consciência: «there can be several mental groupings, which can remain more or less independent to one another, which can alternate with one another in their hold upon consciousness.»[3] Se podemos repartir-nos por vários estados de consciência, em que centro podemos instalar a irredutibilidade do nosso ser? A qual das nossas múltiplas consciências pertencemos e a partir de qual podemos estabelecer uma relação com o mundo suficientemente sólida para dizermos que efectivamente o conhecemos?
Estas e outras questões devem ter-se posto Fernando Pessoa e Saint-John Perse, dois poetas díspares nos recursos e no tom, mas cujo labor poético girou em torno do mesmo problema: o de saber que conhecimento é dado ao sujeito poético agora que nenhuma autoridade, Deus ou Razão, pode legitimar os seus esforços. Se a dor de conhecer era para os antigos o preço de uma loucura a que se lhe juntava a serenidade do heroísmo que aceitava as consequências da descoberta, como bem o souberam os poetas trágicos, para os modernos ela é a omnipresente obsessão do homem que não pode firmar-se numa certeza. Essa obsessão derivará em Fernando Pessoa em tédio e renúncia («A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve»; «Abdica e sê / Rei de ti mesmo»), e em Saint-John Perse na tentativa de criar novas possibilidades de conhecimento através da construção de mundos com recurso à expressão poética, reconhecendo ao mesmo tempo que não existe «nem uma semente pura nas barbas do vento»[4], isto é, a nada nem ninguém podemos reportar a origem imaculada e certa, sobrando-nos ainda assim a possibilidade de tirar «aos nossos estaleiros quilhas imortais»[5].
No ensaio que António Ramos Rosa dedica à genealogia de certa tendência da poesia moderna intitulado «De Vitor Hugo a Saint-John Perse», o poeta português releva bem a tendência da poesia moderna para «pulverizar um mundo em que a unidade e a síntese se procuram num grau de iluminação e obscuridade cada vez mais longe de esquemas e quadros da razão [cartesiana] e da consciência social»[6]. Em Saint-John Perse essa tendência é a única que pode garantir a «permanência e a unidade do Ser»: “For him [o poeta] the entire world of things is governed by a single law of harmony»[7], e essa única lei é a lei da imaginação, faculdade humana que não pode ser corrompida porque nela as estruturas de poder são estilhaçadas pela inconstância dos seus processos, nela todas as representações que o homem se impõe na esfera social são deturpadas, amalgamadas para criar novas possibilidades no tempo em que nenhuma se concretizou e, por isso, todas se podem concretizar. E, assim, em vez da descoberta da verdade absoluta pré-existente, cabe ao poeta construir verdades sem ratificação que se adeqúem aos contornos fluidos do Ser: a etiologia é dispensada em proveito da força irracional do curandeiro: 

«Parado o meu cavalo sob a árvore que arrulha, lanço um assobio mais puro… E paz àqueles que, se vão morrer, não chegaram a ver este dia. Mas de meu irmão, o poeta, tivemos nós notícias. Mais uma vez escreveu uma coisa muito doce. E alguns dela tiveram conhecimento…»[8]

Se Saint-John Perse consegue fundar realidades linguísticas que se propõem como alternativas à falência da legitimidade da razão, já Fernando Pessoa nunca conseguiu libertar-se das aporias de uma consciência fragmentada incapaz de se fixar. Essa é, aliás, a sua tragédia. Não é, portanto, como nos diz Eduardo Lourenço, «da relação da consciência ingénua do mundo que ela [a poesia de Pessoa] fala, mas desde a origem da impossibilidade dessa relação, quer dizer, da condição abissal do próprio acto de ser consciente»[9]. É por essa razão que nunca se nos apresenta o poeta Fernando Pessoa, centro de que irradiariam todos os outros, mas antes o podemos adivinhar lateralmente em cada um dos heterónimos, ortónimo incluído: o verdadeiro Ser é Ausência, na expressão de Eduardo Lourenço, e dele apenas podemos ter sinal pelos tropismos que induz nos heterónimos. É o que nos diz Caeiro: 

Ser real quer dizer não entrar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o Mundo existe, mas não sei se existo.

O «basta existir para se ser completo» de Caeiro reporta-se aos objectos isentos de consciência. Há que reduzir a actividade mental ao grau zero do pensamento, a fim de que se elimine a acção fragmentária da consciência e o ser se unifique objectivando-se. A grande lição do Mestre Caeiro consiste na transposição do pensamento para os mecanismos do sentir («O que em mim sente está pensando»), subterfúgio, aliás, que serve apenas para vincar a angústia da impossibilidade de aceder à realidade. Se o Eu é uma ficção, a realidade não pode ser o seu contraponto mas tão-só a ficção segunda na qual se instala a primeira.
Em Fernando Rei da Nossa Baviera, Eduardo Lourenço sublinha a «solidão ontológica» do Ser, consequência da impossibilidade de o homem moderno dialogar com o mundo, na medida em que não dispõe dos alicerces com os quais poderia fundar essa relação: «Não havia centro, não havia Fernando Pessoa, não há pessoas, mesmo sem ser fernandos: há apenas uma ausência radical do eu a si mesmo, um vazio original, informe e sem nome, apto a revelar-se (inutilmente, aliás) sob mil nomes.»[10] Coube, pois, a Fernando Pessoa sondar esse vazio e dele dar-nos conta. A «única pulsão e único objecto da sua poesia», para terminarmos ainda com Eduardo Lourenço, são «a ausência de toda a realidade, excepto a da actividade anuladora, «néantisante», da consciência»[11]. Longe vão os tempos dos castigos dos deuses para quem ousasse descobrir mais do que lhe era permitido, expediente que usavam para nos impedir de descobrir a verdade que tão zelosamente guardavam: a de que não existem deuses, só abismo.

REFERÊNCIAS
Comte, Auguste, Importância da Filosofia Positiva, Lisboa, Inquérito, s/d.
Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Guimarães Editores, 1997.
Freud, Sigmund, Five Lectures on Psycho-Analisys, La Vergne, BN Publishing, 2008.
Lourenço, Eduardo, Fernando Rei da Nossa Baviera, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.
Perse, Saint-John, Anabase (trad. José Daniel Ribeiro), Lisboa, Relógio D’Água, 1992.
Ramos Rosa, António, Poesia Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro, 1986.


[1] Descartes, p. 12.
[2] Comte, p. 20.
[3] Freud, p. 16.
[4] Perse, p. 55.
[5] Idem, p. 29.
[6] Ramos Rosa, 147.
[7] Discurso de aceitação do Prémio Nobel.
[8] Perse, p. 75.
[9] Lourenço, p. 61.
[10] Idem, p. 102.
[11] Idem, p. 62.

domingo, 10 de abril de 2011

De Ingres a Bacon: a apostasia



Édipo e a Esfinge «d'après» Ingres (1983), Bacon


















Édipo resolve o enigma da esfinge (1808), Ingres




Entre Édipo Resolve o Enigma da Esfinge (1808), de Ingres, e Édipo e a Esfinge «d’après» Ingres (1983), de Francis Bacon, interpõe-se a descrença. O optimismo de um, retratado no momento em que Édipo toma posse do seu destino e afirma o triunfo da sua vontade, contrasta com a figura espasmódica e dolorida do outro, representado no momento em que descobre que nenhuma resposta, nenhuma volição, nenhum confronto, nenhuma vitória atenua a sua tragédia: por trás de «every man who suffers is a piece of meat»[1]. Por trás de cada história, cada consciência, cada biografia está um pedaço de carne destinado ao talho e aos vermes. Bacon não pinta ilusões, sabe que o discurso, e, logo, a nossa história pessoal, é uma ficção. Cada ser, cada Figura são delimitados pelo seu corpo, não pela sua biografia. A realidade não conta história nenhuma, simplesmente é. Por essa razão, Bacon considera-se, em primeira instância, um pintor realista. Ao pintar «o sentido oculto e irrepresentável do individualismo e da existência íntima», misturados «com uma energia explosiva e desespero ao ponto do histerismo, [Bacon] é mais real do que qualquer representação realista»[2]. A percepção de que a realidade não é apenas a súmula da evolução diacrónica dos processos espácio-temporais concomitantes, isto é, a percepção de que a realidade não é uma narrativa, é uma aquisição moderna que tem a sua hipóstase mais contundente em Bacon.
Pelo contrário, Ingres esforça-se por acentuar as implicações do momento decisivo que o seu quadro retrata: Édipo vai resolver o enigma da Esfinge. O corpo inclina-se, o olhar aviva-se, as mãos antecipam as palavras: Édipo tem uma resposta. Não há dúvida de que Édipo vai vencer a Esfinge, cuja face já se ensombra, cuja garra já se distende para impedir o malogro. Mas Édipo está tranquilo, o seu olhar é duro mas sereno, não espelha nenhum receio: não era a Esfinge que o atemorizava, era o desconhecido. Agora que conhece, a Esfinge irá desfazer-se como um sonho. Ingres afirma o lado glorioso do conhecimento, a crença de que o homem vencerá todas as quimeras com a força do seu engenho, e de que nem mesmo a culpa de hoje impedirá a inocência de amanhã. A purificação dar-se-á com a síntese do erro antigo com a nova descoberta, a nova verdade de hoje. Se os deuses conceberam o parricídio e o incesto, aos deuses deve ser atribuída a culpa e o seu nome superado. O Deus que se mostrou falível deve perecer. Ingres é um homem do Iluminismo: os deuses foram depostos do altar, no seu lugar colocou-se a si mesmo, e crê ainda. Há outros que não – vemos ao fundo um homem assustado que foge –, mas Édipo está seguro de si e, por isso, poderá ser uma luz para os outros homens. Édipo Tirano, aquele que ascende por mérito, não por linhagem, mesmo que – ironia! – a linhagem, saberemos depois, para isso lhe bastasse. A Verdade, pois, será uma conquista em Absoluto, não um corpo de carne que perpetuamente se contorce, mas o culminar da sua História.
Mas o que acontece se a pergunta e a resposta fizerem parte da mesma ficção de que a sensação que provocam é a única realidade? E se a realidade for só a carne que sofre porque é da sua natureza sofrer? Então Édipo e a Esfinge olhar-se-iam irmanados, o seu olhar reflectir-se-ia um no outro, e ambos se contorceriam na súbita revelação de que os espera o colapso e a ruína, de que a pergunta e a resposta não inflectirão nenhum aspecto dos seus destinos, que é o de não terem destino.
No quadro de Bacon, a Esfinge já não pergunta e Édipo já não responde, em vez de discursos operam forças: «Bacon’s bodies, heads, Figures are made of flesh, and what fascinates him are the invisible forces that model flesh or shake it.» O que interessa a Bacon é tornar «these forces visible through their effects on the flesh»[3]. As figuras eximem-se à sua história: há um enigma, não importa qual, e resolvê-lo é colidir com forças que dentro de nós se debatem e tentam evadir-se para mostrarem a realidade de que são feitos os enigmas quando nos atingem. Esta a volúpia da Beleza: um corpo que se debate com a superfície plana contra o qual se destaca: «It is the confrontation of the Figure and the field, their solitary wrestling in a shallow depth, that rips the painting away from all narrative but also from all symbolization.»[4] A tragédia moderna é a tragédia dos corpos sem transcendência, mesmo que fosse, como em Ingres, uma transcendência terrestre.
As figuras de Bacon aparecem destituídas de elementos narrativos que lhe pudessem acrescentar significado. O isolamento a que as condena visa torná-las meras imagens, ícones, e não sequências narrativas: elas são forma pura e, como tal, provocam sensações, nunca sentimentos: «A intensa faculdade pré-racional que desponta quando uma força quase sobre-humana subverte a ordem convencional do conhecimento chama-se sensação.»[5] A lógica da sensação procura uma verdade mais funda e primitiva, a do impacto da força anterior ao significado que se lhe atribui. O que vemos no confronto de Édipo com a Esfinge de Bacon é a crise moderna do Significado, a certeza de que entre o que dizemos e o que somos há uma distância intransponível.
Mas não iremos tão longe que disséssemos que a tragédia de Édipo expirou. Ela persiste, ainda que tenha abdicado do seu drama familiar. Édipo está mais só, e vive. E será ainda a vítima e o culpado, agora que tudo o que ele é lhe pertence e lhe quer fugir.
Referências:
Deleuze, Gilles, Francis Bacon: The Logic of Sensation, London, Continuum, 2005.
Ficacci, Luigi, Bacon, Köln, Taschen, 2007.



[1] Deleuze, p. 2
[2] Ficacci, p. 7
[3] Deleuze, p. xii
[4] Deleuze, p. xiv
[5] Ficacci, p. 23

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Declaração de amor a Emily Dickinson


A reclusão – talhe dilecto da imortalidade. Entre o jardim discreto e o quarto exíguo, uma passadeira branca. Uma vida é um caminho ínvio. Passe a expressão. E passe também o amor, embora nunca chegue a entrar.