domingo, 10 de abril de 2011

De Ingres a Bacon: a apostasia



Édipo e a Esfinge «d'après» Ingres (1983), Bacon


















Édipo resolve o enigma da esfinge (1808), Ingres




Entre Édipo Resolve o Enigma da Esfinge (1808), de Ingres, e Édipo e a Esfinge «d’après» Ingres (1983), de Francis Bacon, interpõe-se a descrença. O optimismo de um, retratado no momento em que Édipo toma posse do seu destino e afirma o triunfo da sua vontade, contrasta com a figura espasmódica e dolorida do outro, representado no momento em que descobre que nenhuma resposta, nenhuma volição, nenhum confronto, nenhuma vitória atenua a sua tragédia: por trás de «every man who suffers is a piece of meat»[1]. Por trás de cada história, cada consciência, cada biografia está um pedaço de carne destinado ao talho e aos vermes. Bacon não pinta ilusões, sabe que o discurso, e, logo, a nossa história pessoal, é uma ficção. Cada ser, cada Figura são delimitados pelo seu corpo, não pela sua biografia. A realidade não conta história nenhuma, simplesmente é. Por essa razão, Bacon considera-se, em primeira instância, um pintor realista. Ao pintar «o sentido oculto e irrepresentável do individualismo e da existência íntima», misturados «com uma energia explosiva e desespero ao ponto do histerismo, [Bacon] é mais real do que qualquer representação realista»[2]. A percepção de que a realidade não é apenas a súmula da evolução diacrónica dos processos espácio-temporais concomitantes, isto é, a percepção de que a realidade não é uma narrativa, é uma aquisição moderna que tem a sua hipóstase mais contundente em Bacon.
Pelo contrário, Ingres esforça-se por acentuar as implicações do momento decisivo que o seu quadro retrata: Édipo vai resolver o enigma da Esfinge. O corpo inclina-se, o olhar aviva-se, as mãos antecipam as palavras: Édipo tem uma resposta. Não há dúvida de que Édipo vai vencer a Esfinge, cuja face já se ensombra, cuja garra já se distende para impedir o malogro. Mas Édipo está tranquilo, o seu olhar é duro mas sereno, não espelha nenhum receio: não era a Esfinge que o atemorizava, era o desconhecido. Agora que conhece, a Esfinge irá desfazer-se como um sonho. Ingres afirma o lado glorioso do conhecimento, a crença de que o homem vencerá todas as quimeras com a força do seu engenho, e de que nem mesmo a culpa de hoje impedirá a inocência de amanhã. A purificação dar-se-á com a síntese do erro antigo com a nova descoberta, a nova verdade de hoje. Se os deuses conceberam o parricídio e o incesto, aos deuses deve ser atribuída a culpa e o seu nome superado. O Deus que se mostrou falível deve perecer. Ingres é um homem do Iluminismo: os deuses foram depostos do altar, no seu lugar colocou-se a si mesmo, e crê ainda. Há outros que não – vemos ao fundo um homem assustado que foge –, mas Édipo está seguro de si e, por isso, poderá ser uma luz para os outros homens. Édipo Tirano, aquele que ascende por mérito, não por linhagem, mesmo que – ironia! – a linhagem, saberemos depois, para isso lhe bastasse. A Verdade, pois, será uma conquista em Absoluto, não um corpo de carne que perpetuamente se contorce, mas o culminar da sua História.
Mas o que acontece se a pergunta e a resposta fizerem parte da mesma ficção de que a sensação que provocam é a única realidade? E se a realidade for só a carne que sofre porque é da sua natureza sofrer? Então Édipo e a Esfinge olhar-se-iam irmanados, o seu olhar reflectir-se-ia um no outro, e ambos se contorceriam na súbita revelação de que os espera o colapso e a ruína, de que a pergunta e a resposta não inflectirão nenhum aspecto dos seus destinos, que é o de não terem destino.
No quadro de Bacon, a Esfinge já não pergunta e Édipo já não responde, em vez de discursos operam forças: «Bacon’s bodies, heads, Figures are made of flesh, and what fascinates him are the invisible forces that model flesh or shake it.» O que interessa a Bacon é tornar «these forces visible through their effects on the flesh»[3]. As figuras eximem-se à sua história: há um enigma, não importa qual, e resolvê-lo é colidir com forças que dentro de nós se debatem e tentam evadir-se para mostrarem a realidade de que são feitos os enigmas quando nos atingem. Esta a volúpia da Beleza: um corpo que se debate com a superfície plana contra o qual se destaca: «It is the confrontation of the Figure and the field, their solitary wrestling in a shallow depth, that rips the painting away from all narrative but also from all symbolization.»[4] A tragédia moderna é a tragédia dos corpos sem transcendência, mesmo que fosse, como em Ingres, uma transcendência terrestre.
As figuras de Bacon aparecem destituídas de elementos narrativos que lhe pudessem acrescentar significado. O isolamento a que as condena visa torná-las meras imagens, ícones, e não sequências narrativas: elas são forma pura e, como tal, provocam sensações, nunca sentimentos: «A intensa faculdade pré-racional que desponta quando uma força quase sobre-humana subverte a ordem convencional do conhecimento chama-se sensação.»[5] A lógica da sensação procura uma verdade mais funda e primitiva, a do impacto da força anterior ao significado que se lhe atribui. O que vemos no confronto de Édipo com a Esfinge de Bacon é a crise moderna do Significado, a certeza de que entre o que dizemos e o que somos há uma distância intransponível.
Mas não iremos tão longe que disséssemos que a tragédia de Édipo expirou. Ela persiste, ainda que tenha abdicado do seu drama familiar. Édipo está mais só, e vive. E será ainda a vítima e o culpado, agora que tudo o que ele é lhe pertence e lhe quer fugir.
Referências:
Deleuze, Gilles, Francis Bacon: The Logic of Sensation, London, Continuum, 2005.
Ficacci, Luigi, Bacon, Köln, Taschen, 2007.



[1] Deleuze, p. 2
[2] Ficacci, p. 7
[3] Deleuze, p. xii
[4] Deleuze, p. xiv
[5] Ficacci, p. 23

1 comentário:

Livia Paes Barreto disse...

Parabens pelo post-ensaio! Eu tambem ando me debatendo com esta charada do Bacon e concordo com esta analise. Entendo apenas que a apostasia fica mais evidenciada se analisarmos os criterios da composicao onde o titulo de uma vez por todas nos indica que ele vai "jogar" com o modelo de composicao de Ingres no Tetis e Jupiter....