§ A poesia é uma construção antropológica*, a actualização pela linguagem de mundos em potência ainda não concretizados. A poesia propõe assim um mundo-outro, construído pelo homem à imagem de Deus, inscrevendo na vida realizações que antes apenas se intuíam no ilimitado dos enunciados da linguagem humana. O ilimitado é de Deus, a inscrição é do homem.
§ A inscrição de novos mundos de linguagem no mundo não visa tanto corrigir o que existe, como violentá-lo. A poesia enquanto construção antropológica não pode aspirar, da mesma forma que a ciência não o pode fazer, à rectificação das regras que subsumem o mundo. Quando muito, a ciência pode descobrir por aproximação as leis mais ou menos imutáveis e aprender humildemente a manipulá-las, nunca a corrigi-las. A violência que a poesia exerceria no devir do mundo seria, portanto, da ordem da ofensa e não da transformação. Seria a lucidez possível de um juízo permanente cuja tensão se não deixasse afrouxar. Cuspir na cara do mundo não o muda, mas castiga-o. É essa talvez a única forma de nos mantermos frente a frente com ele. Pouca coisa, já se sabe, mas mais do que isso não se pode, e menos não vale a pena.
*fui buscar esta noção, bem como o dínamo para estas reflexões a Manuel Gusmão (cf. Tatuagem e Palimpsesto, Assírio & Alvim, 2010.)
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