sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Crítica de H. G. Cancela a "Miasmas"

o ritualismo
de forma persistente, e contrariando o prosaísmo contemporâneo, mantém-se em alguns autores a reivindicação da poesia como território ritualista e profanamente sacralizado. é uma postura que entende a poesia como alguma coisa anterior à escrita, alguma coisa que não cabe na própria língua e que só a custo se corporiza enquanto texto. é uma poesia que voluntariamente se instala naquilo que entende como a margem dos valores ou das expectativas.
o livro miasmas 1, de João Moita, é um bom exemplo de uma poesia de temática metafísica: vive da ideia do sagrado, mesmo quando supõe ou opera pela transgressão do religioso. a figura do poeta maldito, capaz de congregar num mesmo movimento a luz e a sombra, o horror e a beleza, surge como sujeito privilegiado desta escrita:

«Deus e Deus sabem que me agarro furiosamente,
que amo o fogo e o fogo atado à solidão. (…)»
2

o ritualismo do imaginário e do léxico suporta aqui uma intensidade semântica e um investimento subjectivo que não é muito comum. ao longo do livro vamos reencontrando uma poesia que tematica e semanticamente se situa no interior deste imaginário e vocabulário sobrecarregados. e no entanto, talvez os melhores momentos do livro sejam aqueles em que o autor opta por formulações que assumem a secura como retórica poética:

«XXXII

Confio-me às minhas transgressões.
Sempre que me afasto dos seus desígnios
a situação fica oh tão frágil.»
3

é uma poesia rigorosa, mas que ganharia em se libertar de algum imagismo e da sobrecarga retórica que a torna reconhecível. tem o mérito de afirmar a diferença face ao prosaísmo contemporâneo, mas não o de se afirmar como verdadeira alternativa.

1. João Moita, miasmas,
Cosmorama Edições, 2010.
2.
idem, 18.
3. idem, 40.

Texto pulicado no blogue Contra Mundum de H. G. Cancela.

Sem comentários: