You'll know it — as you know 'tis Noon —
By Glory —
As you do the Sun —
By Glory —
As you will in Heaven —
Know God the Father — and the Son.
By intuition, Mightiest Things
Assert themselves — and not by terms —
"I'm Midnight" — need the Midnight say —
"I'm Sunrise" — Need the Majesty?
Omnipotence — had not a Tongue —
His lisp — is Lightning — and the Sun —
His Conversation — with the Sea —
"How shall you know"?
Consult your Eye!
*
Sabê-lo-ás – Tal como sabes que é Meio-Dia –
Pela sua Glória –
Como sabes do Sol –
Pela sua Glória –
Como no Céu –
Saberás Deus o Pai – e o Filho.
Pela intuição, as Coisas Imensas
Revelam-se – e não pelas premissas –
“Sou a Meia-noite” – precisa a Meia-noite de dizer? –
“Sou o Nascer do Sol” – Precisa sua Majestade?
Se Omnipotência – não tivesse Língua –
Ceceante – seria o Relâmpago – e o Sol? –
A sua Conversa – com o Mar –
“Como a conheceríamos”?
Pergunta ao teu Olho!
Emily Dickinson
- trad. minha
terça-feira, 29 de novembro de 2011
sábado, 19 de novembro de 2011
Emily Dickinson VIII
Some keep the Sabbath going to Church -
I keep it, staying at Home -
With a Bobolink for a Chorister -
And an Orchard, for a Dome -
Some keep the Sabbath in Surplice -
I just wear my Wings -
And instead of tolling the Bell, for Church,
Our little Sexton - sings.
God preaches, a noted Clergyman -
And the sermon is never long,
So instead of getting to Heaven, at last -
I'm going, all along.
*
Alguns cumprem o Sabbath indo à Igreja -
Eu cumpro-o ficando em Casa -
Com um Tordo por Corista -
E uma Orquídia a fazer de Cúpula -
Alguns cumprem o Sabbath de Batina -
Eu visto apenas as minhas Asas -
E em vez de tanger o Sino para a Celebração,
O nosso pequeno Sacristão – canta.
Deus prega, um Clérigo notável -
E o sermão nunca é muito longo,
E assim em vez de ir para o Céu, no fim -
Desde sempre estou indo.
Emily Dickinson
- trad. minha
I keep it, staying at Home -
With a Bobolink for a Chorister -
And an Orchard, for a Dome -
Some keep the Sabbath in Surplice -
I just wear my Wings -
And instead of tolling the Bell, for Church,
Our little Sexton - sings.
God preaches, a noted Clergyman -
And the sermon is never long,
So instead of getting to Heaven, at last -
I'm going, all along.
*
Alguns cumprem o Sabbath indo à Igreja -
Eu cumpro-o ficando em Casa -
Com um Tordo por Corista -
E uma Orquídia a fazer de Cúpula -
Alguns cumprem o Sabbath de Batina -
Eu visto apenas as minhas Asas -
E em vez de tanger o Sino para a Celebração,
O nosso pequeno Sacristão – canta.
Deus prega, um Clérigo notável -
E o sermão nunca é muito longo,
E assim em vez de ir para o Céu, no fim -
Desde sempre estou indo.
Emily Dickinson
- trad. minha
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Emily Dickinson VII
Many a phrase has the English language –
I have heard but one –
Low as the laughter of a Cricket,
Loud, as the Thunder's Tongue –
Murmuring like old Caspian Choirs,
When the Tide's a' lull –
Saying itself in new inflection –
I have heard but one –
Low as the laughter of a Cricket,
Loud, as the Thunder's Tongue –
Murmuring like old Caspian Choirs,
When the Tide's a' lull –
Saying itself in new inflection –
Like a Whippoorwill –
Breaking in bright Orthography
On my simple sleep –
Thundering its Prospective –
Till I stir, and weep –
Not for the Sorrow, done me –
But the push of joy –
Say it again, Saxon!
Hush – Only to me!
Breaking in bright Orthography
On my simple sleep –
Thundering its Prospective –
Till I stir, and weep –
Not for the Sorrow, done me –
But the push of joy –
Say it again, Saxon!
Hush – Only to me!
*
Mas só uma ouvi –
Funda como o gargalhar de um Grilo –
Estrepitosa como a Língua do Trovão –
Sussurrante como os antigos Coros Cáspios
Quando as Marés serenam –
Dizendo-se a si mesmas em nova inflexão –
Como um Noitibó –
Surgindo em luminosa Ortografia
No meu sono leve –
Bradando a sua Expectativa –
Até eu me mexer, e chorar –
Não de Mágoa –
Mas do apertão da Alegria –
Di-la de novo, Saxão!
Depressa – Só para mim!
Emily Dickinson
- trad. minha
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Emily Dickinson VI
THESE are the days when Birds come back -
A very few - a Bird or two -
To take a backward look.
These are the days when skies resume
The old - old sophistries of June -
A blue and gold mistake.
Oh fraud that cannot cheat the Bee,
Almost thy plausibility
Induces my belief.
Till ranks of seeds their witness bear-
And softly through the altered air
Hurries a timid leaf.
Oh, sacrament of summer days,
Oh, last communion in the Haze -
Permit a child to join.
Thy sacred emblems to partake -
Thy consecrated bread to take
And thine immortal wine!
*
Estes são os dias em que os Pássaros regressam –
Pouquinhos – um Pássaro ou dois –
Para darem uma olhada no que ficou para trás.
Estes são os dias em que os céus retomam
Os velhos – velhos sofismas de Junho –
Um equívoco dourado e azul.
Oh fraude que não engana a Abelha –
Quase que a tua plausibilidade
Induzia a minha crença.
Até que renques de sementes seu testemunho dão –
E suavemente pelo céu revolvido
Apressa-se uma folha tímida.
Oh Sacramento dos dias de verão,
Oh Última Comunhão na Névoa –
Deixai que uma criança se junte.
Dos vossos emblemas sagrados partilhar –
Do vosso pão consagrado repartir
E do vosso vinho imortal!
Emily Dickinson
-trad. minha
A very few - a Bird or two -
To take a backward look.
These are the days when skies resume
The old - old sophistries of June -
A blue and gold mistake.
Oh fraud that cannot cheat the Bee,
Almost thy plausibility
Induces my belief.
Till ranks of seeds their witness bear-
And softly through the altered air
Hurries a timid leaf.
Oh, sacrament of summer days,
Oh, last communion in the Haze -
Permit a child to join.
Thy sacred emblems to partake -
Thy consecrated bread to take
And thine immortal wine!
*
Estes são os dias em que os Pássaros regressam –
Pouquinhos – um Pássaro ou dois –
Para darem uma olhada no que ficou para trás.
Estes são os dias em que os céus retomam
Os velhos – velhos sofismas de Junho –
Um equívoco dourado e azul.
Oh fraude que não engana a Abelha –
Quase que a tua plausibilidade
Induzia a minha crença.
Até que renques de sementes seu testemunho dão –
E suavemente pelo céu revolvido
Apressa-se uma folha tímida.
Oh Sacramento dos dias de verão,
Oh Última Comunhão na Névoa –
Deixai que uma criança se junte.
Dos vossos emblemas sagrados partilhar –
Do vosso pão consagrado repartir
E do vosso vinho imortal!
Emily Dickinson
-trad. minha
domingo, 6 de novembro de 2011
Leopoldo María Panero (I)
Infierno y paraíso
«allá estará también la castañera
de ocho pares,
y el humo de los céntimos, y el vaho en los bolsillos»
de ocho pares,
y el humo de los céntimos, y el vaho en los bolsillos»
Leopoldo Panero "Escrito a cada instante"
Pero no sólo los mendigos, padre, van al paraíso
van también aquellos que aun más asco dan
también estos mendigos del ser que acezan
a la puerta del manicomio
esas caricaturas humanas, tal como esta
que Alicia se piensa en el
jardín no
humano de las flores
y quisiera destruir el universo
porque si hay algún monstruo, éste es la desgracia
y la única injusticia que existe es la injusticia evidente
y si hay alguna moral, ésta es la moral del desastre.
Pero no sólo los mendigos, padre, van al paraíso
van también aquellos que aun más asco dan
también estos mendigos del ser que acezan
a la puerta del manicomio
esas caricaturas humanas, tal como esta
que Alicia se piensa en el
jardín no
humano de las flores
y quisiera destruir el universo
porque si hay algún monstruo, éste es la desgracia
y la única injusticia que existe es la injusticia evidente
y si hay alguna moral, ésta es la moral del desastre.
*
Inferno e paraíso
«ali estará também o castanheiro
de oito pares,
e o fumo dos cêntimos, e o vapor nos bolsos”
Leopoldo Panero "Escrito a cada instante"
Mas não são só os mendigos, pai, que vão para o paraíso
vão também aqueles que metem mais nojo ainda
também esses mendigos do ser que arquejam
à porta do manicómio
essas criaturas humanas, tal como esta
que Alice julga ser no
jardim não
humano das flores
e que queria destruir o universo
porque se existe algum monstro, é o monstro da desgraça
e a única injustiça que existe é a injustiça evidente
e se há alguma moral, é a moral do desastre.
«ali estará também o castanheiro
de oito pares,
e o fumo dos cêntimos, e o vapor nos bolsos”
Leopoldo Panero "Escrito a cada instante"
Mas não são só os mendigos, pai, que vão para o paraíso
vão também aqueles que metem mais nojo ainda
também esses mendigos do ser que arquejam
à porta do manicómio
essas criaturas humanas, tal como esta
que Alice julga ser no
jardim não
humano das flores
e que queria destruir o universo
porque se existe algum monstro, é o monstro da desgraça
e a única injustiça que existe é a injustiça evidente
e se há alguma moral, é a moral do desastre.
- trad. minha
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
Textos e Pretextos 14 - Ensaio de Fernanda Gil Costa sobre "O vento soprado como sangue"
[Saiu recentemente o nº 14 da revista TEXTOS E PRETEXTOS, no qual consta o ensaio da Fernanda Gil Costa sobre o meu primeiro livro, O vento soprado como sangue, que em baixo se reproduz.]
«1- Sem surpresa convivi com poetas. Os professores primeiro, logo no liceu, mais tarde na faculdade. Depois vieram os colegas que em alguns casos eram também ex-professores. Foi sempre uma relação natural e gratificante, como se a vida só fizesse sentido quando os poetas - e não só as palavras que nos entregam – entram por vezes na sala de encontros e desencontros, fazem parte das noites de boémia, tocam à campainha da porta ou ao telefone.
Mas nunca tinha tido um aluno que fosse poeta até encontrar o João Moita (e isso não significa que não tivesse lido poemas escritos por outros); com ele foi diferente deste o princípio porque nunca ensaiou pose de poeta. Escolheu curiosamente o papel de aluno distante mas divertido, difícil de ‘apanhar’, embora nas aulas acabasse sempre por responder às perguntas que causavam a cansativa mudez de tantos, com o desembaraço de quem interroga a banalidade das perguntas e das inevitáveis respostas.
Lembro-me também de ele ter interrompido a apresentação de um programa de semestre porque não integrava nomes de poetas nem livros de poesia. Apresentei um argumento qualquer que ele aceitou pelo menos em parte, mas não eu. A ausência de poetas e poesia num programa de literatura portuguesa tem apenas a ver (no meu caso) com a difícil negociação de interessar por poesia alunos que têm dificuldade em ler/dizer textos em voz alta, fazer aceitar que se pode escrever (e ler) apenas para que as palavras vibrem, entrem no ouvido como víboras bífidas e benignas, abram portas de casas há muito inabitadas. Há outros episódios, mas não interessa.
Quando o João me enviou o primeiro poema, que ainda guardo, senti a marca (pessoal, intransmissível) da sua capacidade de ins-crição. Poucos meses depois tinha publicado um livro de poesia que não o tornou famoso, mas isso é comum. Mesmo entre os que lêem não há muito tempo para a poesia e encontrar um novo poeta é tão difícil nas folhas da crítica especializada como nas secções de poesia das livrarias.
O João é um poeta de voz inquietante, dicção vibrante, intensa e tensa.
2 -O título do seu livro – O Vento Soprado como Sangue – deixa transparecer a vibração do seu encontro com a palavra, por vezes arrepiante, à beira do insustentável “para que nenhuma palavra seja o frio nexo da loucura/ ou o vento soprado como sangue” (X). Como valter hugo mãe recorda no posfácio: “Há homens que precisam de castigar o mundo.” E poderá a propósito convocar-se Kafka quando afirmava que um livro deve ser como um machado que quebra o mar gelado que há em nós.
O livro de JM está dividido em duas secções, “Sangue” e “Vento”, cada uma delas composta por 16 poemas. A completa liberdade/irregularidade do verso submete-se, pois, a uma inesperada simetria da composição. Na primeira secção – “Sangue”, a linguagem é por vezes performativa, eu e tu confrontam-se e estruturam ainda a enunciação:
Ainda que demores e eu já não te espere,
Ainda que as minhas mãos se esvaziem de compaixão
(...)
ainda assim,
se viesses,
repartiríamos o meu pão,
beberíamos o meu vinho
e dormiríamos sobre o chão da minha vida- (I)
As imagens sublinham a materialidade do corpo, da sua solidão, e a proximidade da ferida e do sangue, a(s) “lâmina(s)” , a “faca”, o “cinzel” ou a “foice”, que vão construindo a idéia do sacrifício: “de cada vez que um de nós morre/há uma faca apontada às jugulares” (...) porque “há-de haver um corpo que transite de alma em alma”. Tal parece ser o sacrifício, feito de esquecimento e transmutação, de silêncio e imprecação. Feito igualmente de uma entrega:
Comecemos pela dádiva:
Eis a língua exaurida,
Eis o esquecimento. (...) (II)
O esquecimento lavra como um fogo em mim.
Eu ladro para a noite dos mortos,
E quando esqueço, eles lavram a noite em mim. (VI)
Procura-se o regime absoluto da palavra, a sua total imprevisibilidade de silêncio e deslumbramento (XVI). Assinale-se, mero exemplo, a aliteração de ‘ladrar’ e ‘lavrar’, sendo o primeiro verbo um enunciado do sujeito lírico (‘eu ladro’) enquanto o segundo é remetido para a terceira pessoa (‘eles [os mortos] lavram a noite em mim’), por forma a rejeitar a harmonia assonante, dilacerar o eco decorativo da aliteração. Por isso, o verso é definido como um limite inegociável:
Um verso implacável
Com a têmpera do diamante,
Com a agudeza de um vértice,
A precisão do bisturi,
Na sombra do mundo. (XIV)
O léxico desta poesia é de uma coerência intransigente, invoca-se um percurso que elabora em metáforas de aguda e cortante alquimia um ritual de passagem do eu-tu ao nós, finalmente ao eu solitário (“e eu que sou o sopro e o sentido”, XV) e inclemente: “até aconchegar o silêncio ao meu grito desmedido” (XV). Viagem ainda incompleta, metamorfose sem estádio definitivo, “Sangue” termina com a anáfora que introduz o pressentimento da mudança: “há-de haver um corpo que transite”... /”há-de haver uma voz desvairada”.../, enquanto reafirma a relativa insuficiência da mudança: “Por agora não sei como tocar a distância de onde nos falam”(XVI).
Em “Vento”, o lexema “palavra” surge quase sempre no primeiro verso, por vezes no segundo ou terceiro. Ela é o tópico incontornável que encontra na cópula o acesso possível: “A palavra é a matéria do inabitável.” (X); “A palavra é a sinapse do mundo” (XI). O eu resiste apenas na segunda estrofe do primeiro poema, depois só a palavra é sujeito de definição e acção. Vejamos:
Porque eu alimento-me do esquecimento
Como se o crime ou a diáspora
Recolhessem os despojos da oxidação
Enquanto a língua se fere para uma revelação mais pura (I).
Declinando-se obsessivamente, re-afirma-se na especulação, que é também repetição, fuga melódica e especularidade: “A palavra é um leque metálico aberto à pulsação do mundo./Eis como ela cinde o cristal no seu centro nulo”(II). E ainda: “A palavra freme como um animal/ varado por um nervo retráctil. Todo o movimento é a linguagem lancetada” (V).
A enunciação ostensivamente impessoal de “Vento” reinscreve as imagens mais obsidiantes de “Sangue”: a lâmina, o sangue, o metal, a máquina, o mecânico – “A palavra é um martelo especular/forjando o próprio reflexo.” (XV)
A palavra configura a sua própria evasão.
Ela distende o sopro com que exalta as hélices
Sobre a ausência.
A exuberância é a sua força coerciva. (XII)
3- A poesia não se explica, dá-se a ler no sentido mais literal da sua oferta. Abre o espaço da folha branca à mancha irregular do poema que sucumbe ao ritmo, se abandona à citação. A exuberância de JM é também rigor, um rigor de morte, de limite impermeável à tradução e à paráfrase, agita o ar da (minha) casa do ser contra a apatia, clama por repulsa, raiva, resposta.
É que a poesia vive para a resposta, para o eco. Por isso, é difícil ser indiferente à poesia de JM. A sua interpelação vive da explosão permanente, explora o paradoxo, redime a insalubridade. Um novo livro de poemas – Miasmas - está pronto. Mais difícil, mais exigente, porventura mais erecto que o primeiro, aparentemente mais disfórico, reintegra afinal os temas enunciados em O Vento Soprado como Sangue (num número igual de poemas), re-diz o percurso do corpo à palavra, do bios ao logos. O poeta aperta o seu círculo de rigor, o ostinato rigore que foi título de um livro de Eugénio de Andrade: - “Há uma voz que encanto a golpes e blasfémias/e que transluz nocturna, /voz-napalm que estendo como corda./Eu venho açular os maxilares contra a palavra/a palavra com sangue/ a palavra sangue” (inédito). O sujeito da enunciação abdica da impessoalidade de “Sangue”, emerge como Eu – torna-se bio(s)grafia.
A minha veia poética é alimentada a seringas
do alto da contrição.
Excita-me o que me definha.
O meu coração encolhe se usado como símbolo:
esta é a parábola da compensação.
(inédito)
Nestes versos, creio, condensa-se a poética de JM. “A utopia, portanto, será, a meu ver,” escreve valter hugo mãe, “um tópico essencial para se perceber o frémito desta poesia”. Por isso, também, “Em nome de nada. / Do êxtase recolho a nova moral.”/ - confessa JM no final de Miasmas, em que o contágio de algo inominável, visceral, violento se impõe em nome de um destino que é ao mesmo tempo urgência e fatalidade, vida e morte, deslumbramento e sacrifício.
Além destes dois livros o João também tem uma história na blogo-esfera. Uma história dirigida a vários espaços de ‘acolhimento’ (palavra importante na nossa conversa) comprometidos com as artes (performativas) do nosso tempo. Dos vários testemunhos que aí se encontram, saídos da ferida da leitura que é também a da escrita, escolho um dos que ele enviou para a minha caixa de correio, um tema persistente da memória paradoxal das nossas perdas, da perplexidade que nos interpela pelo lado da cegueira.
Por ter os pés furados chamaram-me Édipo.
Pregaram-me na cruz
porque amei o meu pai e matei a minha mãe.
(inédito)
Fernanda Gil Costa
«1- Sem surpresa convivi com poetas. Os professores primeiro, logo no liceu, mais tarde na faculdade. Depois vieram os colegas que em alguns casos eram também ex-professores. Foi sempre uma relação natural e gratificante, como se a vida só fizesse sentido quando os poetas - e não só as palavras que nos entregam – entram por vezes na sala de encontros e desencontros, fazem parte das noites de boémia, tocam à campainha da porta ou ao telefone.
Mas nunca tinha tido um aluno que fosse poeta até encontrar o João Moita (e isso não significa que não tivesse lido poemas escritos por outros); com ele foi diferente deste o princípio porque nunca ensaiou pose de poeta. Escolheu curiosamente o papel de aluno distante mas divertido, difícil de ‘apanhar’, embora nas aulas acabasse sempre por responder às perguntas que causavam a cansativa mudez de tantos, com o desembaraço de quem interroga a banalidade das perguntas e das inevitáveis respostas.
Lembro-me também de ele ter interrompido a apresentação de um programa de semestre porque não integrava nomes de poetas nem livros de poesia. Apresentei um argumento qualquer que ele aceitou pelo menos em parte, mas não eu. A ausência de poetas e poesia num programa de literatura portuguesa tem apenas a ver (no meu caso) com a difícil negociação de interessar por poesia alunos que têm dificuldade em ler/dizer textos em voz alta, fazer aceitar que se pode escrever (e ler) apenas para que as palavras vibrem, entrem no ouvido como víboras bífidas e benignas, abram portas de casas há muito inabitadas. Há outros episódios, mas não interessa.
Quando o João me enviou o primeiro poema, que ainda guardo, senti a marca (pessoal, intransmissível) da sua capacidade de ins-crição. Poucos meses depois tinha publicado um livro de poesia que não o tornou famoso, mas isso é comum. Mesmo entre os que lêem não há muito tempo para a poesia e encontrar um novo poeta é tão difícil nas folhas da crítica especializada como nas secções de poesia das livrarias.
O João é um poeta de voz inquietante, dicção vibrante, intensa e tensa.
2 -O título do seu livro – O Vento Soprado como Sangue – deixa transparecer a vibração do seu encontro com a palavra, por vezes arrepiante, à beira do insustentável “para que nenhuma palavra seja o frio nexo da loucura/ ou o vento soprado como sangue” (X). Como valter hugo mãe recorda no posfácio: “Há homens que precisam de castigar o mundo.” E poderá a propósito convocar-se Kafka quando afirmava que um livro deve ser como um machado que quebra o mar gelado que há em nós.
O livro de JM está dividido em duas secções, “Sangue” e “Vento”, cada uma delas composta por 16 poemas. A completa liberdade/irregularidade do verso submete-se, pois, a uma inesperada simetria da composição. Na primeira secção – “Sangue”, a linguagem é por vezes performativa, eu e tu confrontam-se e estruturam ainda a enunciação:
Ainda que demores e eu já não te espere,
Ainda que as minhas mãos se esvaziem de compaixão
(...)
ainda assim,
se viesses,
repartiríamos o meu pão,
beberíamos o meu vinho
e dormiríamos sobre o chão da minha vida- (I)
As imagens sublinham a materialidade do corpo, da sua solidão, e a proximidade da ferida e do sangue, a(s) “lâmina(s)” , a “faca”, o “cinzel” ou a “foice”, que vão construindo a idéia do sacrifício: “de cada vez que um de nós morre/há uma faca apontada às jugulares” (...) porque “há-de haver um corpo que transite de alma em alma”. Tal parece ser o sacrifício, feito de esquecimento e transmutação, de silêncio e imprecação. Feito igualmente de uma entrega:
Comecemos pela dádiva:
Eis a língua exaurida,
Eis o esquecimento. (...) (II)
O esquecimento lavra como um fogo em mim.
Eu ladro para a noite dos mortos,
E quando esqueço, eles lavram a noite em mim. (VI)
Procura-se o regime absoluto da palavra, a sua total imprevisibilidade de silêncio e deslumbramento (XVI). Assinale-se, mero exemplo, a aliteração de ‘ladrar’ e ‘lavrar’, sendo o primeiro verbo um enunciado do sujeito lírico (‘eu ladro’) enquanto o segundo é remetido para a terceira pessoa (‘eles [os mortos] lavram a noite em mim’), por forma a rejeitar a harmonia assonante, dilacerar o eco decorativo da aliteração. Por isso, o verso é definido como um limite inegociável:
Um verso implacável
Com a têmpera do diamante,
Com a agudeza de um vértice,
A precisão do bisturi,
Na sombra do mundo. (XIV)
O léxico desta poesia é de uma coerência intransigente, invoca-se um percurso que elabora em metáforas de aguda e cortante alquimia um ritual de passagem do eu-tu ao nós, finalmente ao eu solitário (“e eu que sou o sopro e o sentido”, XV) e inclemente: “até aconchegar o silêncio ao meu grito desmedido” (XV). Viagem ainda incompleta, metamorfose sem estádio definitivo, “Sangue” termina com a anáfora que introduz o pressentimento da mudança: “há-de haver um corpo que transite”... /”há-de haver uma voz desvairada”.../, enquanto reafirma a relativa insuficiência da mudança: “Por agora não sei como tocar a distância de onde nos falam”(XVI).
Em “Vento”, o lexema “palavra” surge quase sempre no primeiro verso, por vezes no segundo ou terceiro. Ela é o tópico incontornável que encontra na cópula o acesso possível: “A palavra é a matéria do inabitável.” (X); “A palavra é a sinapse do mundo” (XI). O eu resiste apenas na segunda estrofe do primeiro poema, depois só a palavra é sujeito de definição e acção. Vejamos:
Porque eu alimento-me do esquecimento
Como se o crime ou a diáspora
Recolhessem os despojos da oxidação
Enquanto a língua se fere para uma revelação mais pura (I).
Declinando-se obsessivamente, re-afirma-se na especulação, que é também repetição, fuga melódica e especularidade: “A palavra é um leque metálico aberto à pulsação do mundo./Eis como ela cinde o cristal no seu centro nulo”(II). E ainda: “A palavra freme como um animal/ varado por um nervo retráctil. Todo o movimento é a linguagem lancetada” (V).
A enunciação ostensivamente impessoal de “Vento” reinscreve as imagens mais obsidiantes de “Sangue”: a lâmina, o sangue, o metal, a máquina, o mecânico – “A palavra é um martelo especular/forjando o próprio reflexo.” (XV)
A palavra configura a sua própria evasão.
Ela distende o sopro com que exalta as hélices
Sobre a ausência.
A exuberância é a sua força coerciva. (XII)
3- A poesia não se explica, dá-se a ler no sentido mais literal da sua oferta. Abre o espaço da folha branca à mancha irregular do poema que sucumbe ao ritmo, se abandona à citação. A exuberância de JM é também rigor, um rigor de morte, de limite impermeável à tradução e à paráfrase, agita o ar da (minha) casa do ser contra a apatia, clama por repulsa, raiva, resposta.
É que a poesia vive para a resposta, para o eco. Por isso, é difícil ser indiferente à poesia de JM. A sua interpelação vive da explosão permanente, explora o paradoxo, redime a insalubridade. Um novo livro de poemas – Miasmas - está pronto. Mais difícil, mais exigente, porventura mais erecto que o primeiro, aparentemente mais disfórico, reintegra afinal os temas enunciados em O Vento Soprado como Sangue (num número igual de poemas), re-diz o percurso do corpo à palavra, do bios ao logos. O poeta aperta o seu círculo de rigor, o ostinato rigore que foi título de um livro de Eugénio de Andrade: - “Há uma voz que encanto a golpes e blasfémias/e que transluz nocturna, /voz-napalm que estendo como corda./Eu venho açular os maxilares contra a palavra/a palavra com sangue/ a palavra sangue” (inédito). O sujeito da enunciação abdica da impessoalidade de “Sangue”, emerge como Eu – torna-se bio(s)grafia.
A minha veia poética é alimentada a seringas
do alto da contrição.
Excita-me o que me definha.
O meu coração encolhe se usado como símbolo:
esta é a parábola da compensação.
(inédito)
Nestes versos, creio, condensa-se a poética de JM. “A utopia, portanto, será, a meu ver,” escreve valter hugo mãe, “um tópico essencial para se perceber o frémito desta poesia”. Por isso, também, “Em nome de nada. / Do êxtase recolho a nova moral.”/ - confessa JM no final de Miasmas, em que o contágio de algo inominável, visceral, violento se impõe em nome de um destino que é ao mesmo tempo urgência e fatalidade, vida e morte, deslumbramento e sacrifício.
Além destes dois livros o João também tem uma história na blogo-esfera. Uma história dirigida a vários espaços de ‘acolhimento’ (palavra importante na nossa conversa) comprometidos com as artes (performativas) do nosso tempo. Dos vários testemunhos que aí se encontram, saídos da ferida da leitura que é também a da escrita, escolho um dos que ele enviou para a minha caixa de correio, um tema persistente da memória paradoxal das nossas perdas, da perplexidade que nos interpela pelo lado da cegueira.
Por ter os pés furados chamaram-me Édipo.
Pregaram-me na cruz
porque amei o meu pai e matei a minha mãe.
(inédito)
Fernanda Gil Costa
26/03/2010»
domingo, 4 de setembro de 2011
Antonio Gamoneda (IX)
É ele, o pão e o esquecimento;
água de juventude; sobrepõe-se
a toda a divisão. Um deus antigo
abre as veias no meu sangue e flui
até cansar o meu coração. O sumo
da serenidade ferve na minha boca;
sorvo o segredo com a língua, mas
mais me sorve ele a mim. Ramos tranquilos
vergam o mosto até aos meus lábios. Ele
usurpa a morte dos meus ossos. Fala
como um melro disperso e todo o bosque
abre os seus frutos e os mananciais
manam lentos em mim. Chorando porém.
Antonio Gamoneda
De Isentos II
Paixão do olhar
[1963-1970 e 2003]
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