Como um antiquíssimo astro
o seu rosto pende crepuscularmente
mostrando os sinais evidentes
da volúpia e da morosidade.
Um dia, ao passar por ali,
encontrei-o segurando nas mãos
o seu coração gelado.
Vi que era um anjo muito puro e lento,
o seu olhar era um horizonte escuro,
a neve derretia-se debaixo da sua respiração.
Havia a monotonia dos dedos
contando as luas e os meses,
perdendo-se e recomeçando.
Disse: «Aproxima-se o tempo dos pentagramas.
Quero estar preparado para esse exercício
de violentas ciladas.»
Assim rejuvenescem as flores, intensamente belas.
Assim crescem os filhos junto da enseada
e as labaredas do amor incendeiam as sepulturas
e as mitras das deusas claras.
Disse: «És muito bela e o teu corpo dança
onde o horizonte é uma lâmina rasa.
Eu conheço o teu nome.
E eu recebo-te:
abro lanhos na pedra que ofereces,
trabalho nela com os dentes,
insidiosamente.»
As palavras estão sentadas em arcos de fogo,
pulsam.
Se o poema o visitar,
ele desaloja as palavras
e senta-se calado,
ardendo.
Disse: «Escrevo,
caminho para um profundo silêncio.
Essa eloquência.
Escrevo para incendiar a memória.
Acreditar que as mãos criam
a fragilidade do corpo,
que existem porque moldam
a intranquilidade da paisagem.
Um dia os deuses regressarão aos moinhos,
absortos nos seus desígnios.
Observarão as mós girar
como se a solidão nunca os visitasse.
Não convocaria agora as suas navalhas.
Eu estou aqui.
Soergo-me e caio.
À entrada das cidades,
serei todos os pórticos em fogo.»
Os homens são assim.
Inventam uma luz para nela mergulhar
a sua escuridão.
Disse-lhe: «Virás por essa estrada.
Tocarás a brisa com os teus dedos
levemente apagados
como se dissessem:Procura-me antes dos meus passos
porque depois deles já não estarei
e neles estou apenas de passagem.
O céu é uma primavera transfigurada:
as flores em seus abismos.
Eis os instrumentos do teu labor.
E eu vou assim,
o coração sem timbales,
os pés feridos.
Chegou a hora do silêncio.
As palavras repousam agora nas margens,
são o sustento de uma ausência.
É por isso que te peço,
dá-me o fogo tripartido do poema,
a sua fulguração.
Como se de chama em chama
a tua face se tornasse mais habitável
para os sinos da manhã.
Como se ensinasses a juntar o silêncio,
peça a peça,
até se escutar essa argêntea fissura que perpassa
as palavras.
Resumem-se a isto os ciclos da fertilidade,
a estas quatro luas incendiadas.
Um cão corre pelas vinhas.
E nunca aprendi
a não me demorar sobre o fogo.»
o seu rosto pende crepuscularmente
mostrando os sinais evidentes
da volúpia e da morosidade.
Um dia, ao passar por ali,
encontrei-o segurando nas mãos
o seu coração gelado.
Vi que era um anjo muito puro e lento,
o seu olhar era um horizonte escuro,
a neve derretia-se debaixo da sua respiração.
Havia a monotonia dos dedos
contando as luas e os meses,
perdendo-se e recomeçando.
Disse: «Aproxima-se o tempo dos pentagramas.
Quero estar preparado para esse exercício
de violentas ciladas.»
Assim rejuvenescem as flores, intensamente belas.
Assim crescem os filhos junto da enseada
e as labaredas do amor incendeiam as sepulturas
e as mitras das deusas claras.
Disse: «És muito bela e o teu corpo dança
onde o horizonte é uma lâmina rasa.
Eu conheço o teu nome.
E eu recebo-te:
abro lanhos na pedra que ofereces,
trabalho nela com os dentes,
insidiosamente.»
As palavras estão sentadas em arcos de fogo,
pulsam.
Se o poema o visitar,
ele desaloja as palavras
e senta-se calado,
ardendo.
Disse: «Escrevo,
caminho para um profundo silêncio.
Essa eloquência.
Escrevo para incendiar a memória.
Acreditar que as mãos criam
a fragilidade do corpo,
que existem porque moldam
a intranquilidade da paisagem.
Um dia os deuses regressarão aos moinhos,
absortos nos seus desígnios.
Observarão as mós girar
como se a solidão nunca os visitasse.
Não convocaria agora as suas navalhas.
Eu estou aqui.
Soergo-me e caio.
À entrada das cidades,
serei todos os pórticos em fogo.»
Os homens são assim.
Inventam uma luz para nela mergulhar
a sua escuridão.
Disse-lhe: «Virás por essa estrada.
Tocarás a brisa com os teus dedos
levemente apagados
como se dissessem:Procura-me antes dos meus passos
porque depois deles já não estarei
e neles estou apenas de passagem.
O céu é uma primavera transfigurada:
as flores em seus abismos.
Eis os instrumentos do teu labor.
E eu vou assim,
o coração sem timbales,
os pés feridos.
Chegou a hora do silêncio.
As palavras repousam agora nas margens,
são o sustento de uma ausência.
É por isso que te peço,
dá-me o fogo tripartido do poema,
a sua fulguração.
Como se de chama em chama
a tua face se tornasse mais habitável
para os sinos da manhã.
Como se ensinasses a juntar o silêncio,
peça a peça,
até se escutar essa argêntea fissura que perpassa
as palavras.
Resumem-se a isto os ciclos da fertilidade,
a estas quatro luas incendiadas.
Um cão corre pelas vinhas.
E nunca aprendi
a não me demorar sobre o fogo.»
João Moita, Revista Ítaca 2, Coisas de Ler, 2010.
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