terça-feira, 21 de julho de 2009

O vento soprado como sangue (II)

XVI

De cada vez que um de nós morre
há uma faca apontada às jugulares:
o silêncio como mantimento.

A morte equilibra-se em nossos corações
com o deslumbramento.

Há-de haver um corpo que transite de alma em alma
e em cujos olhos se alumie a força brutal da mesma vida.
Há-de haver uma voz desvairada que se derrame como napalm
sobre a noite que nos envolve.

Por agora não sei como tocar a distância de onde nos falam.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O vento soprado como sangue

X

Não é como se a mão hesitasse no gesto fundador.
O movimento espera que um astro se incendeie
em todos os tendões
para que nenhuma palavra seja o frio nexo da loucura
ou o vento soprado como sangue.
Uma pedra sobre a boca pode ser o único sustento
para essa fome.
Mas a mão que escreve avança como faca
arrancando à garganta o seu êxtase carbonizado.
A violência é a religião de Deus.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ensaio sobre Idealismo e Realismo em Mário de Sá-Carneiro



Não esquecemos que exaltaste outrora todas as nossas idades. Temos
fé no veneno. Sabemos da nossa vida inteira todos os dias. Eis o tempo dos ASSASSINOS.

Rimbaud


até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza


Herberto Helder


Tanto mais és Deus

Quanto homem te reconheces.

Plutarco



O drama de Mário de Sá-Carneiro está intimamente ligado ao período em que viveu. Efectivamente, o início do séc. XX, marcado pela profunda depressão du fin de siècle, anuncia uma grave crise ontológica, preparando o caminho para as últimas e mais destrutivas ideologias, tentativas vãs de abreviar a crise. A cisão que se processa entre o eu e o mundo – cuja origem radica na consciencialização da falência da noção do progresso enquanto emancipação do homem em relação ao meio físico e suas contingências, consciencialização que deu lugar à desilusão manifesta na crescente instrumentalização do homem pela máquina e sua consequente alienação – provoca em espíritos exacerbados como o de Sá-Carneiro um conflito que se materializa no jogo do tudo ou nada, onde a arte se confunde com a vida na tentativa de a segunda se subsumir na primeira e ser por ela resgatada.
Neste jogo de tudo ou nada, a vida por inteiro ou a morte, existe apenas um resultado possível: aquele que é dado pela súmula das premissas separadas pela disjuntiva: a vida e a morte. A vida por inteiro conquista-se a um único preço, o da dissipação. Sabemo-lo por exemplo da expressão francesa para orgasmo: la petite mort. Esta ideia de morte como preço a pagar pela plenitude foge já à estética do modernismo e da época em que floresceu, para se inscrever no âmbito do pensamento mitológico. Prometeu, Ícaro e Adão são exemplos desse desafio aos deuses (hybris) que acaba sempre gorado; aí estão, cumprindo a sua função de mitos, para iluminar a viagem que Sá-Carneiro encetou dentro de si para se encontrar com a máxima expressão da beleza divina – o homem diante de si mesmo reconhecendo-se em plena integridade –, viagem à qual não sobreviveu: o homem que quer chegar a ser Deus tem de abdicar da sua humanidade. Montaigne, o antípoda de Sá-Carneiro, viu o perigo e, muito lucidamente, decidiu conformar-se. Por isso anota nos seus Ensaios: “Querem sair de si mesmos e escapar ao homem. É loucura: em vez de se tornarem anjos, tornam-se brutos, em vez de se elevarem, rebaixam-se. Estes humores transcendentes apavoram-me, como os lugares altos e inacessíveis”[1].
Este excerto podia muito bem ser, não fosse o diferendo cronológico, uma resposta ao poeta de que nos ocupamos: “As grandes Horas! – vivê-las / A preço mesmo de um crime!”[2]. Viver as grandes Horas: eis tudo. Não viver todas as horas, mas as Grandes Horas.
O preço foi pago. Carlos Ceia mostra como “a poesia de Mário de Sá-Carneiro [se] assemelha a um campo de batalha onde só ficaram destroços. De todos os beligerantes, apenas o Poeta ficou ferido de morte, disperso em pedaços de espírito. (…) Tanto mais amarga se tornará a derrota quanto mais o sujeito progredir para a consciência de si e perceber, no fim, que afinal o outro-inimigo estava dentro de si”[3]. Este outro-inimigo não é mais do que a inesperada segunda premissa da dialéctica que o eu estabelece consigo mesmo sempre que o indivíduo procura dentro de si a sua unidade, o lugar uno que ocupa, a sua impossível síntese. Querer encontrar-se implica o movimento para fora de si, cindindo-se o sujeito em dois ou em vários e tornando ainda mais agónica a procura: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, /E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim”[4].

Esta é a viagem de Mário de Sá-Carneiro, uma viagem interior, ontológica, que pode encontrar paralelo numa outra viagem, esta empírica, protagonizada mais de quatro séculos antes do poeta por Vasco da Gama e imortalizada por Camões.
Também Vasco da Gama desafia os deuses em nome de uma realização que nivelasse os homens e os deuses nos seus feitos. E também ele se defronta com a impossibilidade de alguma vez o alcançar em vida, com a diferença de que Gama consegue mesmo esse nivelamento, através de uma força de vontade irredutível, que, sob a pena de Camões, se torna superior à dos deuses. Tal facto deve-se sobretudo à circunstância de o Renascimento, época em que foi escrito o grande poema épico, marcar o início da esperança nas capacidades humanas em moldar o seu destino, ao passo que o início do séc. XX, época de Sá-Carneiro, representa o final da crença nessas aspirações[5]. Mas, tanto num caso como noutro a vontade desmedida são um traço comum:


(…) Quem te trouxe a estroutro mundo,
Tão longe da tua Pátria lusitana?

- «Abrindo – lhe responde – o mar profundo,
Por onde nunca veio gente humana,
 

Vimos buscar do Indo a grão corrente,
Por onde a lei divina se acrescente.»


Camões, Lusíadas, VII-25

E Sá-Carneiro:
E numa extrema-unção de alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.[6]


Pessoa, que ao contrário de Mário de Sá-Carneiro soube equilibrar a sua busca labiríntica dentro de si, encarnando os diferentes “eus” de forma não concomitante – o que o salvou da dispersão – cunhou a expressão que subsume esta aspiração sobre-humana dos tempos modernos, que pretende sentir tudo de todas as maneiras.
Tal como Montaigne será, no nosso exemplo, o duplo antagónico de Mário de Sá-Carneiro, também Vasco da Gama tem o seu demónio socrático. O Velho do Restelo é, no poema de Camões, o anti-herói que chama à razão os marinheiros embarcados para a Índia, tentando dissuadi-los da viagem através da condenação dos sentimentos que Nietzsche consideraria, por sua vez, elevados, contrariamente à moral cristã, dado que se projectariam para além do bem e do mal. A vaidade, a ambição, a fama, a glória, em suma, a soberba humana – eis os sentimentos grandiloquentes que só algumas almas estão dispostas a perseguir, já que através deles “Que mortes, que perigos, que tormentas, / Que crueldade neles experimentas!” (Lusíadas, IV-95).

Trata-se da velha oposição entre realismo e idealismo, entre Sancho Pança e Dom Quixote. Sá-Carneiro escolheu para modelo D. Quixote e Vasco da Gama, muito embora também ele tenha vacilado por um momento perante a argumentação do Velho do Restelo:
Afronta-me um desejo de fugir

Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz

Não há muitos que a saibam reflectir.[7]


O poeta reconhece a sua excepcionalidade, a sua predeterminação para um destino maior só a poucos concedido. O drama de Sá-Carneiro é ainda mais acutilante do que o de Vasco da Gama, cujo destino se integra numa ambição que não é dele, mas de todo um povo. O peso de um reino que tem sobre as costas alivia-o da sua própria carga: de outro modo estaria condenado a ser livre (Sartre). A identificação do nosso destino com o de uma entidade que nela nos dissolve reduz-nos a responsabilidade perante os nossos próprios actos e as nossas próprias escolhas. Ao contrário, Mário de Sá-Carneiro assume-se integralmente nas suas escolhas, é ele que se joga e não um país que encontrará noutros os substitutos dos que caem. Porém, no autor de "Dispersão", o jogo consigo mesmo processa-se unicamente no plano estético: acontece que em Sá-Carneiro a arte confunde-se com a vida, tal como preconizava Oscar Wilde, autor que Sá-Carneiro tanto admirava, para dessa identificação ascender a um plano ético.

A obsessão do Absoluto, movimento que identifica a vida com a sua manifestação estética, a Arte, levou Mário de Sá-Carneiro numa espiral para dentro de si, obrigando-o a uma viagem sem retorno. Curiosa e simultaneamente, essa viagem até ao centro de si, essa obsessão de se conhecer, tem o mesmo destino da vida empírica: é uma viagem com um único sentido. É neste contexto que Sá-Carneiro nos dá a exacta medida do absurdo da experiência humana. A morte confere irredutivelmente um sentido trágico à vida, por mais comezinha que esta tenha sido. Aqui encontramos o grande mérito e o grande contributo de Mário de Sá-Carneiro e do seu drama pessoal para o reconhecimento do drama universal da espécie humana.
Herberto Helder remete o drama da origem da dupla condição do homem (humana-divina) para o plano mitológico: “Quando começou a navegação aérea – isto é: nas alturas de Ícaro, apesar da biografia desastrosa –, começou-se logo também com o crepúsculo dos ídolos”[8]. Ícaro quis voar para estar mais próximo de Deus, e foi por isso que caiu. Os homens quiseram construir uma torre que os aproximasse do céu, e foi por isso que esta desabou. Adão comeu a maçã proibida porque dessa forma acederia ao conhecimento divino, e foi por isso que foi expulso do paraíso. Prometeu quis roubar o fogo aos deuses, e foi por isso agrilhoado para a eternidade. Todos estes homens foram castigados pelos seus actos revolucionários; de todas estas transgressões resultaram acrescentos para a humanidade.
O Velho do Restelo terá as suas razões para ficar em casa. Quem parte, joga tudo e tudo perde. Acontece simplesmente que dessa derrota singular todos ganhamos.
Mário de Sá-Carneiro decidiu partir, mas a sua época não era para idealismos (como o resultado dos idealismos em que foi pródiga demonstrou). Por isso foi mais lúcido que os seus antecessores, e, nessa medida, mais trágico. Sá-Carneiro não é um idealista puro, ele reserva-se ainda algum grau de realismo: sabe que tudo é ilusão, principalmente a aspiração à grandeza:

A última ilusão foi partir os espelhos –
E nas salas ducais, os frisos das esculturas
Desfizeram-se em pó… Todas as bordaduras
Caíram de repente aos reposteiros velhos.[9]


Na longa introdução ao volume das poesias reunidas de Sá-Carneiro, Maria Ema Tarracha Ferreira mostra, a propósito do poema “A um suicida”, que este “constitui a confissão do fracasso da existência e da falência das ilusões, expressa pelo eu-poético e condensada na imagem-símbolo «asas-partidas»[10]”. Esta imagem-símbolo dá-nos imediatamente conta da mistura de realismo e idealismo na concepção poética (e, como já vimos, da própria vida) do nosso autor. A viagem é abortada logo à partida devido ao reconhecimento da impossibilidade da sua realização, permanecendo apenas enquanto aspiração inatingível: “Eu fui alguém que se enganou / E achou mais belo ter errado…”[11].
A assunção da beleza do erro quando motivado por um propósito grande não pode ser vista como compensação por uma derrota. É, na verdade, uma derrota total, sem rodeios. A estricnina dos últimos minutos é o assumir final de uma derrota. Tão-só de uma derrota de alguém que recusou a mediocridade, a ponderabilidade e a contenção de uma vida trivial, a vida do nascer e ir morrendo, seguindo, ainda que já sabendo que não conseguiria, o exemplo enorme de Vasco da Gama. Assim, Mário de Sá-Carneiro viveu o drama total do ser humano, o drama do homem que fica preso entre o extremo que lhe calhou e o outro que busca, entre o real e o ideal, entre “mim” e o “outro”:

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.[12]


O título do livro póstumo de Mário de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro, resume toda a sua biografia. Na arena da batalha de que falava Carlos Ceia, o poeta ergue-se derrotado e sacode as suas roupas. A poeira que se levanta não é lama, mas oiro.

Notas:

[1] Apud. Bloom, p. 125.
[2] Sá-Carneiro, p. 99.
[3] Ceia, p. 236.
[4] Sá-Carneiro, p. 33.
[5] cf. Saraiva e Lopes, p. 335.
[6] Sá-Carneiro, p. 25.
[7] Ibid.
[8] Helder, p. 58.
[9] Sá-Carneiro, p. 82.
[10] Tarracha, p. 25.
[11] Sá-Carneiro, p. 91.
[12] Sá-Carneiro, p. 73.

Bibliografia
Bloom, Harold, Onde está a sabedoria?, Lisboa, Relógio D’Água, 2008.

Ceia, Carlos, De Punho Cerrado – ensaios de hermenêutica dialéctica da literatura portuguesa contemporânea, Lisboa, Edições Cosmos, 1997.

Ferreira, Maria Ema Tarracha, "Introdução", In: Sá-Carneiro, Mário de, Poesias, Lisboa, Editorial Verbo, 2005.

Helder, Herberto, Photomaton & Vox (4.ª ed.), Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.

Mourão-Ferreira, David, Hospital das Letras (1ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 1966.

Sá-Carneiro, Mário de Sá, Poemas Completos (3ª ed.), Lisboa, Assírio & Alvim, 2005.

Saraiva, António José e Lopes, Óscar, História da Literatura Portuguesa (17. ed.), Porto Editora, 2005.