sábado, 31 de outubro de 2009

Corpo sacrificial

Caravaggio, O sacrifício de Issac, 1603.


O comovente neste quadro é o olhar suplicante do cordeiro. Ele vai morrer no lugar do Outro, para que o objecto amado, o Outro, não morra. É uma solidão absoluta, sem remédio. Abraão ama Isaac, e Deus ama Abraão. Ninguém ama o cordeiro. O cordeiro é mero objecto que existe em função de uma acção na qual é mero pretexto. O pai da fé instaura-a através de uma volição, através da demonstração de uma intenção, através de um salto disjuntivo da consciência (Kierkegaard). O sacrificado, o supliciado o crucificado, em suma – está ausente desse processo, desta prova de amor incondicional, constituindo-se como elemento externo ao circuito. Ele existe como encadeamento final substitutivo. A sua identidade é irrelevante no quadro da sua função, na medida em que ele é um elemento exterior à necessidade da prova de amor, a sua existência é posterior e está subjugada a essa necessidade: o importante é que realize, enquanto elemento operativo, a acção na qual não participa. É da ordem dos utensílios. 

1 comentário:

Isabel Santiago disse...

Se Deleuze inspirasse todos desta maneira, então Deleuze libertaria muitos cordeiros, como eu (risos) do esquecimento. Já vi este quadro ao vivo, e o que sempre senti é que o cordeiro é mesmo o que Deus quer: Deus ama a necessidade. O cordeiro que pode ser édipo coincide com essa suprema natureza de Deus. Deus não escolhe. Nele tudo é id~entico à forma como tem que ser. Por isso sofre. Por isso ele é cordeiro dele mesmo. O texto está uma belíssima reflexão. Foi o abraço que pedi.