sábado, 27 de maio de 2017

No final era o Verbo e não havia Deus: a palavra absoluta de Vergílio Ferreira e Herberto Helder




                O que é próprio dos deuses é serem imortais. Um Deus não morre, ou, se morre, não era Deus. Afirmar, como Nietzsche, que Deus morreu é dizer que Deus nunca existiu e assinalar com o dito o momento irreversível em que se tornou manifesto o que antes era apenas pressentido. Deus morreu, mas não deixou cadáver. Quando muito, Deus morreu para nós, e, na pior das hipóteses, se ordenávamos a vida em função de um ideal de fé e do além que prometia, Deus morreu em nós, e então algo de nós morreu também. Mas reconhecer que Deus era mortal não é despromovê-lo de um trono onde a sua presença e assento divinos tivessem sido eficazes, isto é, de onde tivessem actuado como sentido, mas descobrir que o sentido que nele achávamos era um modo falso de forjarmos um sentido para o que o não tinha. As benesses que Dele tivéssemos recebido, consideradas retrospectivamente, não podem senão surgir-nos agora como logros, mentiras, ilusões, subterfúgios, em suma, uma muito acomodada e muito sartreana má-fé. Dizer que Deus morreu é o mesmo que dizer que não havia Deus e, assim, a plenitude que caucionava quando vivo tem agora de ser reabsorvida pela precariedade da vida de cada homem que algum dia sentiu plenitude, e a angústia que também sentiu diante do que o excedia agudiza-se ao saber-se angústia de nada, angústia pelo nada que nos vence e não nos explica e nós não explicamos.
                A morte de Deus traz portanto implícita a necessidade de reinterpretar o passado à luz retroactiva deste novo dado. Se noutras épocas se pretende que se viveu o absoluto de Deus, se, parafraseando Heidegger, ele se constituía então como referência que articulava a história e reunia em si tudo o que existe[1], não é menos verdade que sempre houve alguma ínfima parte do homem que ficava de fora desse centro aglomerador, e que essa ínfima parte, de uma maneira ou de outra, sempre conseguiu minar o sistema, ou pelo menos reservar para si o pequeno mas devastador império da dúvida.
                Vergílio Ferreira sentiu decerto a morte de Deus como uma revelação, experiência de que exemplarmente nos dá conta, por exemplo, em Manhã Submersa (1953). Houve portanto um tempo anterior ao assombro de se descobrir abandonado no mundo sem o princípio ordenador com que desde a infância o instruíam. A memória dessa instrução, da cultura em que medrou, talvez repercuta na sua obra como repertório ancestral a partir do qual o tonos de uma emoção pudesse ainda aflorar, constituindo-se assim privilegiado recurso expressivo, mas não creio que em momento algum a ela remetesse para nela assinalar a nostalgia de um absoluto perdido. Ao contrário do que uma parte importante dos críticos de Vergílio Ferreira tem afirmado, não creio que a angústia existencial do herói vergiliano se caracterize pelo sentimento de perda de uma plenitude havida e recorrentemente procurada, nos limites de uma descrença tendente para uma fé redentora, figurada numa Presença pressentida ou hipostasiada, mas antes pela assunção trágica da irremediável solidão do homem, que se vê a braços com o incomunicável milagre da sua vida, para o qual não encontra princípio ou explicação.
O reconhecimento da ausência de solução para o mistério da existência não corresponde, porém, no herói vergiliano ao abandono desinteressado do problema. Bem pelo contrário, ele é constantemente retomado sob a forma mais abrangente da interrogação, noção que, como todos nós aqui presentes sabemos, se distingue em Vergílio Ferreira da noção mais rasa de pergunta, na medida em que esta procura uma resposta que a feche em solução, isto é, que suprima nela a inquietação, e a primeira não aspira senão a essa abertura do ser por onde se contempla o espantoso do que precisamente solução não tem. Se as verdades, mesmo as verdades de sangue, estão sujeitas ao desgaste que o tempo nelas opera, o mesmo não acontece com a interrogação, que é anterior a todas as verdades e não tem como elas superfície mas apenas profundidade.
É na leitura que se faz da remissão a esta questionação sem inquirição que eu creio estar o equívoco da defesa da alegada visão vergiliana de um mundo padecente de uma disjunção inicial que teria instaurado a lacuna que o herói romanesco do nosso autor procurasse resolver, como se esta interrogação lançada ao vazio do espaço não fosse mais do que um apelo aos deuses para que voltassem. Há de facto em Vergílio Ferreira uma obsessão pelo sagrado que vem desta noção de interrogação como apelo ao que nos transcende, isto é, ao que nos excede e está para além da nossa compreensão; tão-só trata-se de um sagrado anterior aos deuses, que inclusivamente os exclui na medida em que eles cerceiam a liberdade plena e sem margens que está na base do interrogar, ou, dito de outra forma, na medida em que eles se fixam no domínio da religião, na mesma proporção em que a liberdade não se fixa por tudo desconhecer e tudo arrebatar no mundo primordial sem referências.
O ateísmo de Vergílio Ferreira, como de resto o de Herberto Helder, que neste estudo necessariamente breve vamos tentar fazer dialogar com o nosso autor, não é irreligioso, porque o homem, mesmo o mais ateu, mesmo o mais alienado, não é nem pode ser nunca inteiramente irreligioso. Ser ateu é não ter Deus a quem remeter o que de inquietante encontre na relação com a vida e o mundo, e por isso sentir a inquietação de uma forma mais premente, ainda que apenas uma única e derradeira vez. O homem só seria irreligioso se fosse ele mesmo Deus e tivesse, como ele, origem em si mesmo, não havendo por isso necessidade do que o explicasse. Que o ateísmo não é irreligioso lembra-nos Heidegger quando, no livro já citado, nos diz que “a desdivinização não […] exclui a religiosidade”[2], e, noutro texto da mesma obra, que os que simplesmente não acreditam em Deus “não são descrentes porque Deus, enquanto Deus, se lhes tornou indigno de fé, mas porque eles mesmos renunciaram à possibilidade da fé na medida em que já não procuram Deus”. E acrescenta: “Eles já não podem procurar porque já não sabem pensar”[3]. Sermos sensíveis ao mistério de haver o que há sem sermos nesse haver uma necessidade absoluta não é estarmos nem mais próximos nem mais afastados de uma verdade que nos transcenda. Nota disso mesmo nos dá Vergílio Ferreira num dos seus textos fundamentais, talvez um pouco subvalorizado, essa longínqua Carta ao Futuro (1958), quando pede

“que ninguém nos demonstre que é incoerente e sobretudo insincero reconhecer a evidência da morte dos deuses e estremecer na angústia de um mundo despovoado, de um universo reduzido à incrível escala humana. […] A saudade de Deus não é o sonho do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a inexorável verificação da permanência de uma interrogação para a qual já não nos basta a resposta que nos deram.”[4]

Daí que não nos deva parecer estranho que Mário, o protagonista de Cântico Final (1960), tivesse escolhido as paredes de uma capela em ruínas para nelas realizar a sua obra derradeira. A escolha do local não é aleatória, mas não podemos ver nesse gesto uma capitulação ao sonho de infantilismo que dominasse o artista maduro. Não a resposta que outrora aquele espaço simbolizara, mas a esta mesma viva interrogação pinta Mário naquelas paredes nuas. Não será bem uma profanação, porque a profanação pressupõe sempre uma adesão ao que nega, uma denegação, mas a recuperação de um sentir original que nasce desse sentimento de estado de criatura, para usar uma expressão de um autor que Vergílio Ferreira estimava, Rudolf Otto[5], de que as religiões, suas relíquias e suas ruínas, nos dão remota e degradada notícia. Em Cântico Final, o reempossamento do espaço consagrado ao culto propicia a redescoberta sempre precária e difícil do mundo original da arte, não para augurar o retorno do que se tivesse ausentado, mas precisamente para o sentenciar a um exílio eterno e recuperar o que estava antes dele em forma de interrogação metafísica. Porque, se “a decoração de uma capela era o sinal sensível, corrente, de um apelo que não findara, de uma surpresa que se não esgotou”, ela representava também “o fim de um fim – não o começo de um regresso”[6].
Também a esta interrogação sem horizonte de resposta parece-me pretender Herberto Helder dar expressão na sua obra, como de resto o próprio atesta na autoentrevista recentemente republicada por Maria Lúcia Dal Farra no mais recente número da revista Relâmpago:

“Interessa-me este resultado: o de que em mim, expressando-se em gramática, em pauta, há uma expectativa ardente, uma ardente pergunta sem resposta, uma perplexidade ardente, que me concedem um centro, um ponto de vista sobre a debandada das coisas, coisas centrífugas para diante, nos dias, no caos dos dias, centrífugas para trás, nos instantes mais densos da memória, átomos fosforescendo no caótico fluxo da memória. E então eu sei: respiro nessa pergunta, respiro na escrita dessa pergunta. Qualquer resposta seria um erro.”[7]

Aqui a pergunta, ou interrogação, para repor o problema em termos vergilianos, é apresentada como concedendo um centro, um ponto de vista sobre o mundo, pois ela emana da perplexidade de um eu remetido à sua intransitividade e à sua incomunicabilidade. Um eu que sabe não poder dar nenhum salto para fora de si, confinado à sua gramática, à pauta em que reconfigura o mundo à sua medida, ele que é a medida de um mundo que medida não tem. Daí que se respire nessa pergunta sem inquirição nem resposta – recordemos que “qualquer resposta seria um erro” –, pois que esta pergunta suspensa e rodeada do vazio que a contorna configura os limites mais estritos de um eu que nela se revela e a si próprio se dá a conhecer. Daí também que “aquilo que se aprende vem do nosso próprio ensino” e que se aprenda “sempre as maneiras da pergunta”[8], como frisa Herberto Helder noutra passagem do mesmo texto. Aprendemos o modo original de sermos pela experiência da descida de nós a nós mesmos, da aparição de nós a nós mesmos, da atenção aos modos da pergunta que não responde mas acende em nós a centelha do que somos para nela nos espelharmos e ofuscarmos dentro do circuito fechado da nossa vida.
É talvez abusiva a aproximação terminológica entre os dois autores, mas não sei se a atitude que codificam está assim tão distante uma da outra. Senão vejamos. Em Alegria Breve (1965), Vergílio Ferreira dá-nos uma fórmula muito acutilante, isto é, muito à maneira herbertiana, que sintetiza esta ideia do semi-fracasso da interrogação, que ao não obter repouso para si mesma numa resposta que a silenciasse, se condena à repetição e à agudização do espanto que a gerou, numa vertiginosa espiral em cujo centro o homem se realizasse, achando aí a única possibilidade de se realizar. “Fornicai na treva e no abandono”, diz-se no romance e nele se repete com pequenas mas significativas variantes. Assim, o vocábulo “abandono” é progressivamente substituído pelos vocábulos “solidão”, “aflição” e “maldição”, numa intensificação da gradação do sentimento de abandono expresso na primeira enunciação. Vemos pois que para Vergílio Ferreira todos os actos autenticamente humanos, dos mais básicos aos mais elevados (aqui fornicar integra-se em qual das categorias?), se têm de cumprir dentro dos limites da sua estrita imanência, sem nunca abrirem para a transcendência que no entanto buscam – e é essa busca não bem da transcendência, mas de se transcenderem a si mesmos, quer dizer, de se ultrapassarem, que faz deles actos especificamente humanos. Não é um sentido aglutinador, uma presença na qual se espraie, o que o homem busca, mas rever-se e reaver-se todo nessa busca. Porque o que é próprio do humano é sentir a ausência como carência e o excesso como transbordamento. Por isso Jaime Faria pode dizer sem contradição: “Não pertenço ao número dos Reis Magos, mas ficou-me o jeito de o ser, um rasto procuro, um rasto de nada”[9]. A descoberta de que a estrela-guia era apenas mais uma estrela dentre os triliões de estrelas no abismo do universo relegou o protagonista para o caos primordial, e como o primeiro homem, procura o que ordene a confusão do que existe, ainda que sabendo agora que toda a ordem é de si que parte e a si regressa sem achar onde se firmar.
O mesmo jeito de procurar sem achar um rasto de nada que fosse tudo parece-me encontrar-se neste excerto de um poema de A faca não corta o fogo (2009), de Herberto Helder:

“[…] e menos ainda percebo o movimento que já sinto
no papel se se aproxima, por exemplo
pelo tremor da textura
do caderno e da força da
esferográfica dolorosa, a palavra Deus saída pronta,
arrebatada aos limbos, como se diz que se arrebata
aos ferros, a poder de tenazes e martelos,
um objecto, vá lá: supremo:
uma chave, quer
se queira quer se não queira, mas
que não abre coisa nenhuma”[10]

                A palavra Deus saída pronta à força de oficina e escritura – mas não à força de fé –, um objecto supremo que vem da esferográfica para o caderno e que aí estremece pelo impulso criativo da mão que escreve – e não de um poder que a ela transcendesse e nela encarnasse –, uma palavra absoluta que é preciso resgatar ao limbo onde foi posta morta para que regresse como sinal do impulso criador do poeta, uma chave que abrisse para o que fizesse compreender o movimento inicial de que se fala no início do excerto, mas uma chave, por fim, que não abre coisa nenhuma, uma chave, portanto, ineficaz a não ser como símbolo da eficácia que não tem.
                O mesmo jeito de procurar sem esperança de achar pode ler-se ainda, e de forma talvez mais clara, no final do terceiro movimento de Fonte, poema inserto em A Colher na Boca (1961). Aqui, é a alma mater que é inquirida no limbo da sua morte, figuração da morte dos deuses, e a sua resposta é a mesma que encontramos na inquirição ao insondável de Vergílio Ferreira: o silêncio ou, neste caso, a morte que cresce pelos dedos acima, dedos esvaziados de sentido, que no entanto tacteiam ainda e sempre em busca de um “sinal ardente e incorrupto”:

“Do tempo novo espero
o sinal ardente e incorrupto,
mas levo os dedos ao teu nome prolongado,
ó cerrada mãe, levo
os dedos vazios –
e a tua morte cresce por eles totalmente.”[11]

                Esta morte, ou, se se preferir, este silêncio que cresce pelos dedos acima, não me parece poder ser interpretado senão como o silêncio primordial de um mundo desabitado, o mundo original que, segundo Vergílio Ferreira, a arte recupera como interrogação, ainda que, neste caso, esse silêncio cresça a partir dos despojos dos deuses, isto é, dos signos que os designavam e agora designam uma realidade vazia. Mater primeva, Deus, a Grande Ordem, palavras absolutas sem o absoluto delas, mais do que recuperar o que se perdeu para sempre, elas visam tornar acutilante o vazio que deixaram para com ele desestabilizarem as coordenadas de um discurso que por elas se orientava. Em A inocência do devir – ensaio a partir da obra de Herberto Helder, Silvina Rodrigues Lopes parece apontar isto mesmo quando afirma que “quer se encontre uma representação de Deus, quer se reconheça a impossibilidade de o representar, Deus como causa garantiria a estabilidade do sentido, isso mesmo que a figuralidade do discurso poético põe em questão”[12]. E a mesma ideia de silêncio inaugural prévio ao Verbo criador e, logo, prévio ao nascimento dos deuses, é veiculada por Maria Estela Guedes como condição primeira do poema. É o que podemos ler na seguinte passagem do seu ensaio de 1979, Herberto Helder – poeta obscuro: “A mais alta expressão poética definir-se-ia pelo absoluto silêncio, pura acção criadora e original ab initio [sic]. Silêncio correspondente à palavra capaz de dispensar todas as palavras, pois seria a palavra única, a Palavra”[13]. Aqui o silêncio, por definição ausência de sentido, corresponde a uma concentração do sentido da qual emergirá a palavra definitiva, a palavra poética, expressão da atitude interrogativa que a gerou.
                Também em Vergílio Ferreira se plasma à evidência o anseio por esta palavra absoluta, capaz de dispensar todas as outras, erguendo-se do fundo de silêncio em que a vida toda se reuniria e remataria. Seria a palavra final, a que tudo subsumisse, a que tudo dissesse de uma vez para sempre e nada deixasse por dizer, a que fosse “a essencial decifração da vida toda”[14], ”a palavra do abismo”[15] em que o homem se afundasse e nele coubesse inteiro e não sobrasse espaço onde ressoasse uma nova palavra que à primeira respondesse. Estou a pensar muito concretamente na palavra que a mãe de Paulo, o narrador de Para Sempre (1983), não conseguiu articular antes de morrer e que este procura recuperar na memória perdida desse tempo. Será talvez redundante recordar a este propósito o excerto de Herberto Helder há pouco citado, a mão que se estende para a mãe morta, que lhe toca provavelmente na boca imóvel, de onde sobe o silêncio que o domina. Assim, também a palavra inaudita da mãe de Paulo fica a ressoar por ele acima ao longo da vida esvaziada do sentido que ela lhe daria se ele a pudesse escutar.
Agora é Paulo que se prepara para morrer, regressa à casa da sua infância para se reconciliar com o seu destino. A pacificação do final é quase total, a desistência também, e a aceitação que vem depois de tudo cumprido. Mas há um pequeno enigma a resolver: que palavra final quis legar-lhe a mãe? Seria ela a palavra que toda a vida procurou sem a saber dizer? E no entanto ele a procurou, “a palavra que revele”, diz ele, “a que inteira, e o mundo abrindo nela para o entendimento da vida. Oculta procuro-a nas esquinas rápidas da minha desorientação, no medo, na angústia, na aflição exorbitada […]”[16], ou, noutra passagem, “a [palavra] que selasse por uma vez a linguagem do sangue”[17], isto é, a linguagem do que antecede a linguagem, a linguagem em estado de nascimento, para recuperar um conceito entre nós divulgado por Manuel Gusmão, a linguagem, enfim, “a repetir a sua origem” [18], a dizer o novo.
Mas não é apenas de forma oblíqua que Herberto Helder, por seu lado, manifesta o desejo de se encontrar com esta palavra absoluta, a última, a primeira, anterior ou posterior ao uso que “a inspiração dos povos” dela faz, a palavra virgem de sentido, cujo sentido a adquirir infundisse a loucura no coração do poeta e lhe provocasse a embriaguez profunda da interrogação. Senão vejamos o seguinte excerto do terceiro andamento de O Poema, de A Colher na Boca:

“Penso que devia existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida […].
Que palavra seria, ignoro. […]
Sei que minha vida estremeceria, […]
[…] que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês da primavera e a terra
baixa e magnífica.”[19]

Seria fácil ver no anseio por esta palavra absoluta uma vontade de regresso à Presença que essa palavra instauraria no mundo, remediando com a sua positividade a pura negatividade da existência. Com efeito, na obra de ambos os autores podemos encontrar alguns exemplos que isso demonstram de forma mais ou menos inequívoca, como acontece, talvez, nos últimos versos acima transcritos. Contudo, creio não ser excessivo afirmar que esses exemplos não configuram, como os exemplos em sentido contrário, uma tendência geral da obra. Em todo o caso, em momento algum pretende esta palavra absoluta erigir-se à maneira do absoluto hegeliano, dado que ela não poderia constituir-se como verdade experimentada, relevando de um jogo dialéctico que opusesse duas verdades prévias de que fosse corolário. Este Absoluto nunca poderia estatuir-se como verdade revelada por uma verdade anterior, por um lado, nem, por outro, como verdade encontrada por uma verdade segunda que fosse descobrindo a primeira. Pelo contrário, esta palavra só será absoluta na medida em que for pura espontaneidade e expressão de uma consciência intacta que desabrocha. É por isso que ela não é dialogante, como, de resto, a interrogação também não é.
Em Vergílio Ferreira, particularmente, são recorrentes os episódios em que o herói-narrador exprime a necessidade de lançar um grito ao espaço infinito como forma iniludível de afirmar a sua presença no mundo, mais do que na tentativa vã de com o grito estabelecer um contacto reparador com o mais além que as ondas sonoras alcançassem. É o que vemos nesta passagem elucidativa de Alegria Breve:

“Abruptamente porém atiro um berro grosso para o horizonte
– Eh!...
e fico extático, aterrado comigo, do excesso de mim. Não chamava ninguém: clamava a minha abundância, decerto o meu desespero.”[20]

Já em Herberto Helder, a enunciação realça frequentemente os processos da fonação, com ênfase na mecânica corporal e seus fluídos, acentuando com isso o carácter estritamente orgânico, e portanto imanente, da vocalização. Não obstante, o acento nos mecanismos da fonação visa ainda transcendê-los por efeito de uma força que viria do “fundo informulado de uma vida”[21], isto é, tal como em Vergílio Ferreira, do excesso que há no ser humano e que lhe vem do facto de ser consciência e poder por ela projectar-se separado de si e do mundo. No excerto de um poema de Flash (1980) que abaixo transcrevo, vemos como em Herberto Helder a palavra absoluta de que toda a sua obra é exemplo e enleio tem origem no corpo e suas cavidades naturais, atravessadas pelos elementos orgânicos que são o fundamento da vida biológica, e como é desses canais rodeados de carne e irrigados pelo sangue que ela se ergue para a atmosfera onde se constitui interrogação ou afirmação de um excesso que vem de dentro e que, como o vento, aspira a expandir-se:

“Sei às vezes que o corpo é uma severa
massa oca, […].
E que me atravessa um protoplasma
primitivo,
uma electricidade do universo,
uma força.
E por esse canal calcinado sai
um ruído rítimo, uma fremente
desarrumação do ar, o verbo sibilante,
vento:
o som onde começa tudo – o som.

Completamente vivo.”[22]

Eis como o absoluto de sentido do Verbo genesíaco se viu reduzido em Herberto Helder à escala do ruído sincopado da facúndia humana. Os autores que de que me ocupei terão sentido essa redução como uma amputação, mas nem por isso recusaram menos todas as próteses. Cumpriram-se na busca desesperada de uma palavra total que dissesse o homem todo desde o princípio, apagando os milénios de sedimentação e a experiência acumulada pelos povos, uma palavra virgem em que o homem se afirmasse como valor derradeiro, depois de todos os valores cunhados pela usura das línguas, uma palavra que fosse no final o Verbo, e que nesse Verbo não estivesse Deus como um embuste, mas o mínimo intervalo entre o homem e o nada que o faz ser; e que esse intervalo fosse preenchido pelo impulso de transformar a escala infinitesimal de que parte na absurda escala do infinito, que é verdadeiramente a escala humana, a escala do horizonte onde sempre se projecta. Não uma palavra que nos fosse dita e nela nos revíssemos, mas a palavra que buscássemos no fundo de nós e que fosse só nossa, e dizê-la seria afirmarmo-nos até aos limites de sermos esta busca perpétua.


Lisboa, 7 de Maio de 2016



[1] Cf. Heidegger, Martin, Caminhos de Floresta (3.ª ed.), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 309.
[2] Op. Cit., p. 98.
[3] Idem, p. 305.
[4] Ferreira, Vergílio, Carta ao Futuro (4.ª ed.), Lisboa, Bertrand Editora, 1985, p. 50-1.
[5] “O sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o que está acima de toda a criatura.” Otto, Rudolf, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 19.
[6] Ferreira, Vergílio, Cântico Final (7.ª ed.), Lisboa, Bertrand Editora, 1985, p. 162.
[7] Helder, Herberto, Autoentrevista, apud. Dal Farra, Maria Lúcia, in: “Um devaneio brasileiro”, Relâmpago, n.º 36/37, p. 127-8.
[8] Idem, p.132.
[9] Ferreira, Vergílio, Alegria Breve (7.ª ed.), Lisboa, Bertrand Editora, 2004, p. 250.
[10] Helder, Herberto, Ofício Cantante, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 595-6
[11] Idem, p. 50.
[12] Lopes, Silvina Rodrigues, A inocência do devir – Ensaio a partir da obra de Herberto Helder, Lisboa, Edições Vendaval, 2003, p. 78-9.
[13] Guedes, Maria Estela, Herberto Helder: poeta obscuro, Lisboa, Moraes Editores, p. 16.
[14] Ferreira, Vergílio, Para Sempre (14.ª ed.), Lisboa, Bertrand Editora, 2004, p 66.
[15] Idem, p. 108.
[16] Idem, p. 66.
[17] Idem, p. 13.
[18] Gusmão, Manuel, Tatuagem & Palimpsesto: da poesia em alguns poetas e poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 15.
[19] Op. Cit, p. 31.
[20] Op. Cit., p. 87.
[21] Idem, p. 109.
[22] Op. Cit., p. 352.

Sem comentários: