O que é próprio dos deuses é
serem imortais. Um Deus não morre, ou, se morre, não era Deus. Afirmar, como
Nietzsche, que Deus morreu é dizer que Deus nunca existiu e assinalar com o
dito o momento irreversível em que se tornou manifesto o que antes era apenas
pressentido. Deus morreu, mas não deixou cadáver. Quando muito, Deus morreu
para nós, e, na pior das hipóteses, se ordenávamos a vida em função de um ideal
de fé e do além que prometia, Deus morreu em nós, e então algo de nós morreu
também. Mas reconhecer que Deus era mortal não é despromovê-lo de um trono onde
a sua presença e assento divinos tivessem sido eficazes, isto é, de onde tivessem
actuado como sentido, mas descobrir que o sentido que nele achávamos era um
modo falso de forjarmos um sentido para o que o não tinha. As benesses que Dele
tivéssemos recebido, consideradas retrospectivamente, não podem senão
surgir-nos agora como logros, mentiras, ilusões, subterfúgios, em suma, uma
muito acomodada e muito sartreana má-fé. Dizer que Deus morreu é o mesmo que dizer
que não havia Deus e, assim, a plenitude que caucionava quando vivo tem agora de
ser reabsorvida pela precariedade da vida de cada homem que algum dia sentiu
plenitude, e a angústia que também sentiu diante do que o excedia agudiza-se ao
saber-se angústia de nada, angústia pelo nada que nos vence e não nos explica e
nós não explicamos.
A morte
de Deus traz portanto implícita a necessidade de reinterpretar o passado à luz retroactiva
deste novo dado. Se noutras épocas se pretende que se viveu o absoluto de Deus,
se, parafraseando Heidegger, ele se constituía então como referência que
articulava a história e reunia em si tudo o que existe[1], não é
menos verdade que sempre houve alguma ínfima parte do homem que ficava de fora
desse centro aglomerador, e que essa ínfima parte, de uma maneira ou de outra,
sempre conseguiu minar o sistema, ou pelo menos reservar para si o pequeno mas
devastador império da dúvida.
Vergílio
Ferreira sentiu decerto a morte de Deus como uma revelação, experiência de que
exemplarmente nos dá conta, por exemplo, em Manhã
Submersa (1953). Houve portanto um tempo anterior ao assombro de se
descobrir abandonado no mundo sem o princípio ordenador com que desde a
infância o instruíam. A memória dessa instrução, da cultura em que medrou,
talvez repercuta na sua obra como repertório ancestral a partir do qual o tonos de uma emoção pudesse ainda aflorar,
constituindo-se assim privilegiado recurso expressivo, mas não creio que em
momento algum a ela remetesse para nela assinalar a nostalgia de um absoluto
perdido. Ao contrário do que uma parte importante dos críticos de Vergílio
Ferreira tem afirmado, não creio que a angústia existencial do herói vergiliano
se caracterize pelo sentimento de perda de uma plenitude havida e
recorrentemente procurada, nos limites de uma descrença tendente para uma fé
redentora, figurada numa Presença pressentida ou hipostasiada, mas antes pela assunção
trágica da irremediável solidão do homem, que se vê a braços com o incomunicável
milagre da sua vida, para o qual não encontra princípio ou explicação.
O reconhecimento da ausência de solução para
o mistério da existência não corresponde, porém, no herói vergiliano ao abandono
desinteressado do problema. Bem pelo contrário, ele é constantemente retomado
sob a forma mais abrangente da interrogação, noção que, como todos nós aqui presentes
sabemos, se distingue em Vergílio Ferreira da noção mais rasa de pergunta, na
medida em que esta procura uma resposta que a feche em solução, isto é, que
suprima nela a inquietação, e a primeira não aspira senão a essa abertura do
ser por onde se contempla o espantoso do que precisamente solução não tem. Se
as verdades, mesmo as verdades de sangue, estão sujeitas ao desgaste que o
tempo nelas opera, o mesmo não acontece com a interrogação, que é anterior a
todas as verdades e não tem como elas superfície mas apenas profundidade.
É na leitura que se faz da remissão a esta
questionação sem inquirição que eu creio estar o equívoco da defesa da alegada visão
vergiliana de um mundo padecente de uma disjunção inicial que teria instaurado
a lacuna que o herói romanesco do nosso autor procurasse resolver, como se esta
interrogação lançada ao vazio do espaço não fosse mais do que um apelo aos
deuses para que voltassem. Há de facto em Vergílio Ferreira uma obsessão pelo
sagrado que vem desta noção de interrogação como apelo ao que nos transcende,
isto é, ao que nos excede e está para além da nossa compreensão; tão-só
trata-se de um sagrado anterior aos deuses, que inclusivamente os exclui na
medida em que eles cerceiam a liberdade plena e sem margens que está na base do
interrogar, ou, dito de outra forma, na medida em que eles se fixam no domínio
da religião, na mesma proporção em que a liberdade não se fixa por tudo
desconhecer e tudo arrebatar no mundo primordial sem referências.
O
ateísmo de Vergílio Ferreira, como de resto o de Herberto Helder, que neste
estudo necessariamente breve vamos tentar fazer dialogar com o nosso autor, não
é irreligioso, porque o homem, mesmo o mais ateu, mesmo o mais alienado, não é
nem pode ser nunca inteiramente irreligioso. Ser ateu é não ter Deus a quem
remeter o que de inquietante encontre na relação com a vida e o mundo, e por
isso sentir a inquietação de uma forma mais premente, ainda que apenas uma
única e derradeira vez. O homem só seria irreligioso se fosse ele mesmo Deus e tivesse,
como ele, origem em si mesmo, não havendo por isso necessidade do que o
explicasse. Que o ateísmo não é irreligioso lembra-nos Heidegger quando, no
livro já citado, nos diz que “a desdivinização não […] exclui a religiosidade”[2], e,
noutro texto da mesma obra, que os que simplesmente não acreditam em Deus “não
são descrentes porque Deus, enquanto Deus, se lhes tornou indigno de fé, mas
porque eles mesmos renunciaram à possibilidade da fé na medida em que já não
procuram Deus”. E acrescenta: “Eles já não podem procurar porque já não sabem
pensar”[3]. Sermos
sensíveis ao mistério de haver o que há sem sermos nesse haver uma necessidade
absoluta não é estarmos nem mais próximos nem mais afastados de uma verdade que
nos transcenda. Nota disso mesmo nos dá Vergílio Ferreira num dos seus textos
fundamentais, talvez um pouco subvalorizado, essa longínqua Carta ao Futuro (1958), quando pede
“que ninguém
nos demonstre que é incoerente e sobretudo insincero reconhecer a evidência da
morte dos deuses e estremecer na angústia de um mundo despovoado, de um
universo reduzido à incrível escala humana. […] A saudade de Deus não é o sonho
do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a
inexorável verificação da permanência de uma interrogação para a qual já não
nos basta a resposta que nos deram.”[4]
Daí que não nos deva parecer estranho que
Mário, o protagonista de Cântico Final
(1960), tivesse escolhido as paredes de uma capela em ruínas para nelas realizar
a sua obra derradeira. A escolha do local não é aleatória, mas não podemos ver
nesse gesto uma capitulação ao sonho de infantilismo que dominasse o artista
maduro. Não a resposta que outrora aquele espaço simbolizara, mas a esta mesma viva
interrogação pinta Mário naquelas paredes nuas. Não será bem uma profanação, porque
a profanação pressupõe sempre uma adesão ao que nega, uma denegação, mas a
recuperação de um sentir original que nasce desse sentimento de estado de criatura, para usar uma
expressão de um autor que Vergílio Ferreira estimava, Rudolf Otto[5], de que
as religiões, suas relíquias e suas ruínas, nos dão remota e degradada notícia.
Em Cântico Final, o reempossamento do
espaço consagrado ao culto propicia a redescoberta sempre precária e difícil do
mundo original da arte, não para augurar o retorno do que se tivesse ausentado,
mas precisamente para o sentenciar a um exílio eterno e recuperar o que estava
antes dele em forma de interrogação metafísica. Porque, se “a decoração de uma
capela era o sinal sensível, corrente, de um apelo que não findara, de uma
surpresa que se não esgotou”, ela representava também “o fim de um fim – não o
começo de um regresso”[6].
Também
a esta interrogação sem horizonte de resposta parece-me pretender Herberto
Helder dar expressão na sua obra, como de resto o próprio atesta na autoentrevista recentemente republicada
por Maria Lúcia Dal Farra no mais recente número da revista Relâmpago:
“Interessa-me
este resultado: o de que em mim, expressando-se em gramática, em pauta, há uma expectativa
ardente, uma ardente pergunta sem resposta, uma perplexidade ardente, que me
concedem um centro, um ponto de vista sobre a debandada das coisas, coisas
centrífugas para diante, nos dias, no caos dos dias, centrífugas para trás, nos
instantes mais densos da memória, átomos fosforescendo no caótico fluxo da
memória. E então eu sei: respiro nessa pergunta, respiro na escrita dessa
pergunta. Qualquer resposta seria um erro.”[7]
Aqui a pergunta, ou interrogação, para
repor o problema em termos vergilianos, é apresentada como concedendo um
centro, um ponto de vista sobre o mundo, pois ela emana da perplexidade de um
eu remetido à sua intransitividade e à sua incomunicabilidade. Um eu que sabe
não poder dar nenhum salto para fora de si, confinado à sua gramática, à pauta
em que reconfigura o mundo à sua medida, ele que é a medida de um mundo que
medida não tem. Daí que se respire nessa pergunta sem inquirição nem resposta –
recordemos que “qualquer resposta seria um erro” –, pois que esta pergunta
suspensa e rodeada do vazio que a contorna configura os limites mais estritos
de um eu que nela se revela e a si próprio se dá a conhecer. Daí também que
“aquilo que se aprende vem do nosso próprio ensino” e que se aprenda “sempre as
maneiras da pergunta”[8], como frisa
Herberto Helder noutra passagem do mesmo texto. Aprendemos o modo original de
sermos pela experiência da descida de nós a nós mesmos, da aparição de nós a
nós mesmos, da atenção aos modos da pergunta que não responde mas acende em nós
a centelha do que somos para nela nos espelharmos e ofuscarmos dentro do
circuito fechado da nossa vida.
É talvez abusiva a aproximação
terminológica entre os dois autores, mas não sei se a atitude que codificam
está assim tão distante uma da outra. Senão vejamos. Em Alegria Breve (1965), Vergílio Ferreira dá-nos uma fórmula muito acutilante,
isto é, muito à maneira herbertiana, que sintetiza esta ideia do semi-fracasso
da interrogação, que ao não obter repouso para si mesma numa resposta que a
silenciasse, se condena à repetição e à agudização do espanto que a gerou, numa
vertiginosa espiral em cujo centro o homem se realizasse, achando aí a única possibilidade
de se realizar. “Fornicai na treva e no abandono”, diz-se no romance e nele se
repete com pequenas mas significativas variantes. Assim, o vocábulo “abandono”
é progressivamente substituído pelos vocábulos “solidão”, “aflição” e
“maldição”, numa intensificação da gradação do sentimento de abandono expresso
na primeira enunciação. Vemos pois que para Vergílio Ferreira todos os actos autenticamente
humanos, dos mais básicos aos mais elevados (aqui fornicar integra-se em qual
das categorias?), se têm de cumprir dentro dos limites da sua estrita
imanência, sem nunca abrirem para a transcendência que no entanto buscam – e é
essa busca não bem da transcendência, mas de se transcenderem a si mesmos, quer
dizer, de se ultrapassarem, que faz deles actos especificamente humanos. Não é
um sentido aglutinador, uma presença na qual se espraie, o que o homem busca,
mas rever-se e reaver-se todo nessa busca. Porque o que é próprio do humano é sentir
a ausência como carência e o excesso como transbordamento. Por isso Jaime Faria
pode dizer sem contradição: “Não pertenço ao número dos Reis Magos, mas
ficou-me o jeito de o ser, um rasto procuro, um rasto de nada”[9]. A
descoberta de que a estrela-guia era apenas mais uma estrela dentre os triliões
de estrelas no abismo do universo relegou o protagonista para o caos primordial,
e como o primeiro homem, procura o que ordene a confusão do que existe, ainda
que sabendo agora que toda a ordem é de si que parte e a si regressa sem achar
onde se firmar.
O
mesmo jeito de procurar sem achar um rasto de nada que fosse tudo parece-me
encontrar-se neste excerto de um poema de A
faca não corta o fogo (2009), de Herberto Helder:
“[…] e menos
ainda percebo o movimento que já sinto
no papel se
se aproxima, por exemplo
pelo tremor
da textura
do caderno e
da força da
esferográfica
dolorosa, a palavra Deus saída pronta,
arrebatada
aos limbos, como se diz que se arrebata
aos ferros, a
poder de tenazes e martelos,
um objecto,
vá lá: supremo:
uma chave,
quer
se queira
quer se não queira, mas
que não abre
coisa nenhuma”[10]
A
palavra Deus saída pronta à força de oficina e escritura – mas não à força de
fé –, um objecto supremo que vem da esferográfica para o caderno e que aí
estremece pelo impulso criativo da mão que escreve – e não de um poder que a
ela transcendesse e nela encarnasse –, uma palavra absoluta que é preciso
resgatar ao limbo onde foi posta morta para que regresse como sinal do impulso criador
do poeta, uma chave que abrisse para o que fizesse compreender o movimento
inicial de que se fala no início do excerto, mas uma chave, por fim, que não
abre coisa nenhuma, uma chave, portanto, ineficaz a não ser como símbolo da
eficácia que não tem.
O mesmo jeito de procurar sem esperança de achar pode
ler-se ainda, e de forma talvez mais clara, no final do terceiro movimento de Fonte, poema inserto em A Colher na Boca (1961). Aqui, é a alma mater que é inquirida no limbo da
sua morte, figuração da morte dos deuses, e a sua resposta é a mesma que
encontramos na inquirição ao insondável de Vergílio Ferreira: o silêncio ou,
neste caso, a morte que cresce pelos dedos acima, dedos esvaziados de sentido,
que no entanto tacteiam ainda e sempre em busca de um “sinal ardente e
incorrupto”:
“Do tempo
novo espero
o sinal
ardente e incorrupto,
mas levo os
dedos ao teu nome prolongado,
ó cerrada
mãe, levo
os dedos
vazios –
e a tua morte
cresce por eles totalmente.”[11]
Esta
morte, ou, se se preferir, este silêncio que cresce pelos dedos acima, não me
parece poder ser interpretado senão como o silêncio primordial de um mundo
desabitado, o mundo original que, segundo Vergílio Ferreira, a arte recupera
como interrogação, ainda que, neste caso, esse silêncio cresça a partir dos
despojos dos deuses, isto é, dos signos que os designavam e agora designam uma
realidade vazia. Mater primeva, Deus,
a Grande Ordem, palavras absolutas sem o absoluto delas, mais do que recuperar
o que se perdeu para sempre, elas visam tornar acutilante o vazio que deixaram
para com ele desestabilizarem as coordenadas de um discurso que por elas se
orientava. Em A inocência do devir –
ensaio a partir da obra de Herberto Helder, Silvina Rodrigues Lopes parece
apontar isto mesmo quando afirma que “quer se encontre uma representação de
Deus, quer se reconheça a impossibilidade de o representar, Deus como causa
garantiria a estabilidade do sentido, isso mesmo que a figuralidade do discurso poético põe
em questão”[12].
E a mesma ideia de silêncio inaugural prévio ao Verbo criador e, logo, prévio
ao nascimento dos deuses, é veiculada por Maria Estela Guedes como condição primeira
do poema. É o que podemos ler na seguinte passagem do seu ensaio de 1979, Herberto Helder – poeta obscuro: “A mais
alta expressão poética definir-se-ia pelo absoluto silêncio, pura acção
criadora e original ab initio [sic]. Silêncio correspondente à palavra
capaz de dispensar todas as palavras, pois seria a palavra única, a Palavra”[13]. Aqui o
silêncio, por definição ausência de sentido, corresponde a uma concentração do
sentido da qual emergirá a palavra definitiva, a palavra poética, expressão da
atitude interrogativa que a gerou.
Também
em Vergílio Ferreira se plasma à evidência o anseio por esta palavra absoluta,
capaz de dispensar todas as outras, erguendo-se do fundo de silêncio em que a
vida toda se reuniria e remataria. Seria a palavra final, a que tudo
subsumisse, a que tudo dissesse de uma vez para sempre e nada deixasse por
dizer, a que fosse “a essencial decifração da vida toda”[14], ”a
palavra do abismo”[15] em que o
homem se afundasse e nele coubesse inteiro e não sobrasse espaço onde ressoasse
uma nova palavra que à primeira respondesse. Estou a pensar muito concretamente
na palavra que a mãe de Paulo, o narrador de Para Sempre (1983), não conseguiu articular antes de morrer e que
este procura recuperar na memória perdida desse tempo. Será talvez redundante
recordar a este propósito o excerto de Herberto Helder há pouco citado, a mão
que se estende para a mãe morta, que lhe toca provavelmente na boca imóvel, de
onde sobe o silêncio que o domina. Assim, também a palavra inaudita da mãe de
Paulo fica a ressoar por ele acima ao longo da vida esvaziada do sentido que
ela lhe daria se ele a pudesse escutar.
Agora é Paulo que se prepara para morrer,
regressa à casa da sua infância para se reconciliar com o seu destino. A
pacificação do final é quase total, a desistência também, e a aceitação que vem
depois de tudo cumprido. Mas há um pequeno enigma a resolver: que palavra final
quis legar-lhe a mãe? Seria ela a palavra que toda a vida procurou sem a saber
dizer? E no entanto ele a procurou, “a palavra que revele”, diz ele, “a que
inteira, e o mundo abrindo nela para o entendimento da vida. Oculta procuro-a
nas esquinas rápidas da minha desorientação, no medo, na angústia, na aflição
exorbitada […]”[16],
ou, noutra passagem, “a [palavra] que selasse por uma vez a linguagem do
sangue”[17], isto
é, a linguagem do que antecede a linguagem, a linguagem em estado de nascimento,
para recuperar um conceito entre nós divulgado por Manuel Gusmão, a linguagem,
enfim, “a repetir a sua origem” [18], a
dizer o novo.
Mas
não é apenas de forma oblíqua que Herberto Helder, por seu lado, manifesta o
desejo de se encontrar com esta palavra absoluta, a última, a primeira, anterior
ou posterior ao uso que “a inspiração dos povos” dela faz, a palavra virgem de
sentido, cujo sentido a adquirir infundisse a loucura no coração do poeta e lhe
provocasse a embriaguez profunda da interrogação. Senão vejamos o seguinte
excerto do terceiro andamento de O Poema,
de A Colher na Boca:
“Penso que
devia existir para cada um
uma só
palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de
sentido e que,
vinda de um
ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados
de uma vida […].
Que palavra
seria, ignoro. […]
Sei que minha
vida estremeceria, […]
[…] que o meu
coração
ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa
tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome
seria iluminado
por todos os
outros nomes da terra, e tudo
arderia num
só fogo, entre o espaço violento
do mês da
primavera e a terra
baixa e
magnífica.”[19]
Seria
fácil ver no anseio por esta palavra absoluta uma vontade de regresso à
Presença que essa palavra instauraria no mundo, remediando com a sua
positividade a pura negatividade da existência. Com efeito, na obra de ambos os
autores podemos encontrar alguns exemplos que isso demonstram de forma mais ou
menos inequívoca, como acontece, talvez, nos últimos versos acima transcritos.
Contudo, creio não ser excessivo afirmar que esses exemplos não configuram,
como os exemplos em sentido contrário, uma tendência geral da obra. Em todo o
caso, em momento algum pretende esta palavra absoluta erigir-se à maneira do
absoluto hegeliano, dado que ela não poderia constituir-se como verdade experimentada, relevando de um jogo
dialéctico que opusesse duas verdades prévias de que fosse corolário. Este
Absoluto nunca poderia estatuir-se como verdade revelada por uma verdade
anterior, por um lado, nem, por outro, como verdade encontrada por uma verdade
segunda que fosse descobrindo a primeira. Pelo contrário, esta palavra só será
absoluta na medida em que for pura espontaneidade e expressão de uma
consciência intacta que desabrocha. É por isso que ela não é dialogante, como,
de resto, a interrogação também não é.
Em
Vergílio Ferreira, particularmente, são recorrentes os episódios em que o
herói-narrador exprime a necessidade de lançar um grito ao espaço infinito como
forma iniludível de afirmar a sua presença no mundo, mais do que na tentativa
vã de com o grito estabelecer um contacto reparador com o mais além que as
ondas sonoras alcançassem. É o que vemos nesta passagem elucidativa de Alegria Breve:
“Abruptamente
porém atiro um berro grosso para o horizonte
– Eh!...
e fico
extático, aterrado comigo, do excesso de mim. Não chamava ninguém: clamava a
minha abundância, decerto o meu desespero.”[20]
Já em
Herberto Helder, a enunciação realça frequentemente os processos da fonação,
com ênfase na mecânica corporal e seus fluídos, acentuando com isso o carácter
estritamente orgânico, e portanto imanente, da vocalização. Não obstante, o
acento nos mecanismos da fonação visa ainda transcendê-los por efeito de uma
força que viria do “fundo informulado de uma vida”[21], isto
é, tal como em Vergílio Ferreira, do excesso que há no ser humano e que lhe vem
do facto de ser consciência e poder por ela projectar-se separado de si e do
mundo. No excerto de um poema de Flash
(1980) que abaixo transcrevo, vemos como em Herberto Helder a palavra absoluta
de que toda a sua obra é exemplo e enleio tem origem no corpo e suas cavidades
naturais, atravessadas pelos elementos orgânicos que são o fundamento da vida
biológica, e como é desses canais rodeados de carne e irrigados pelo sangue que
ela se ergue para a atmosfera onde se constitui interrogação ou afirmação de um
excesso que vem de dentro e que, como o vento, aspira a expandir-se:
“Sei às vezes
que o corpo é uma severa
massa oca,
[…].
E que me
atravessa um protoplasma
primitivo,
uma
electricidade do universo,
uma força.
E por esse
canal calcinado sai
um ruído
rítimo, uma fremente
desarrumação
do ar, o verbo sibilante,
vento:
o som onde
começa tudo – o som.
Completamente
vivo.”[22]
Eis
como o absoluto de sentido do Verbo genesíaco se viu reduzido em Herberto
Helder à escala do ruído sincopado da facúndia humana. Os autores que de que me
ocupei terão sentido essa redução como uma amputação, mas nem por isso recusaram
menos todas as próteses. Cumpriram-se na busca desesperada de uma palavra total
que dissesse o homem todo desde o princípio, apagando os milénios de
sedimentação e a experiência acumulada pelos povos, uma palavra virgem em que o
homem se afirmasse como valor derradeiro, depois de todos os valores cunhados
pela usura das línguas, uma palavra que fosse no final o Verbo, e que nesse Verbo
não estivesse Deus como um embuste, mas o mínimo intervalo entre o homem e o
nada que o faz ser; e que esse intervalo fosse preenchido pelo impulso de
transformar a escala infinitesimal de que parte na absurda escala do infinito,
que é verdadeiramente a escala humana, a escala do horizonte onde sempre se
projecta. Não uma palavra que nos fosse dita e nela nos revíssemos, mas a
palavra que buscássemos no fundo de nós e que fosse só nossa, e dizê-la seria afirmarmo-nos
até aos limites de sermos esta busca perpétua.
Lisboa, 7 de Maio de 2016
[1] Cf. Heidegger, Martin, Caminhos de Floresta (3.ª ed.), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014,
p. 309.
[2] Op. Cit., p. 98.
[3] Idem, p. 305.
[4] Ferreira,
Vergílio, Carta ao Futuro (4.ª ed.),
Lisboa, Bertrand Editora, 1985, p.
50-1.
[5] “O
sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o
que está acima de toda a criatura.” Otto, Rudolf, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 19.
[6] Ferreira,
Vergílio, Cântico Final (7.ª ed.),
Lisboa, Bertrand Editora, 1985, p. 162.
[7] Helder,
Herberto, Autoentrevista, apud. Dal Farra, Maria Lúcia, in: “Um
devaneio brasileiro”, Relâmpago, n.º 36/37, p. 127-8.
[8] Idem, p.132.
[9] Ferreira,
Vergílio, Alegria Breve (7.ª ed.),
Lisboa, Bertrand Editora, 2004, p. 250.
[10] Helder,
Herberto, Ofício Cantante, Lisboa,
Assírio & Alvim, 2009, p. 595-6
[11] Idem, p. 50.
[12] Lopes,
Silvina Rodrigues, A inocência do devir –
Ensaio a partir da obra de Herberto Helder, Lisboa, Edições Vendaval, 2003,
p. 78-9.
[13] Guedes,
Maria Estela, Herberto Helder: poeta obscuro,
Lisboa, Moraes Editores, p. 16.
[14] Ferreira,
Vergílio, Para Sempre (14.ª ed.),
Lisboa, Bertrand Editora, 2004, p 66.
[15] Idem, p. 108.
[16] Idem, p. 66.
[17] Idem, p. 13.
[18] Gusmão,
Manuel, Tatuagem & Palimpsesto: da
poesia em alguns poetas e poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 15.
[19] Op. Cit, p. 31.
[20] Op. Cit., p. 87.
[21] Idem, p. 109.
[22] Op. Cit., p. 352.
Sem comentários:
Enviar um comentário