quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Tempo e Poesia



A maior abstracção da realidade é o ritmo, subjectivação da duração. Com o ritmo, a palavra demarca-se das referências inertes do tempo linear e converge para o âmbito das dotações subjectivas, a partir das quais o tempo se destaca sobre uma consciência que o cerca e dele se apropria. Daí que nenhuma das formas artísticas mediadas pelo ritmo, a música e a poesia, possa dar a medida do real.

*

Nessa medida, a poesia é, verdadeiramente e em sentido bíblico, criação. Acrescenta realidade à realidade. E o seu consolo vem-nos da posse desse real excedente que criámos e que oferecemos. Os deuses não desdenham os sacrifícios, mas são as preces o que mais lhes alegra o coração. Ninguém se compraz quando se lhe devolve o presente que ofereceu. Deus dá o cordeiro, mas quem reza é que lhe sopra pelo ouvido dentro o vendaval que o enlouquece.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Antonio Gamoneda (XIII)



Sobre a máquina do pranto

Uma tira de aço enlouquecido entra em si mesma e sai de si mesma. Fende os esqueletos, dispersa os resíduos, rói as varas, inflama os chicotes, decapita os bronzes. Desce às células do óxido. Regressa aos anéis. Descansa. Pesa o silêncio. Não. Nada é verdade. A não ser, unicamente, talvez, o furor das tiras, mas

a realidade anuncia a sua mentira. O que
é uma mentira nas
entranhas do aço?
                        Descem
cabelos desprendidos da ira.
                                     Desce
a incandescência vulcânica.

Quem verte chamas e cabelos sobre a sede das serpentes?

O que é este nó, esta
mecânica arterial, esta
tortura silvestre? Não
há salvação. Não há
clemência, não há
frutos nem sombras na
selva do aço.

Ai dos nós, ai das serpentes!

Um ser sem pensamento induz o delírio das tiras. Quem? É esta a paixão inversa que se deduz da impossibilidade? É apenas uma inclemência digital? Não sei. Não me respondas. Não há nada a dizer nem a compreender. Ver, apenas ver, esta beleza cruel. As suas vísceras, a sua dentadura cónica, a sua vertigem.

Ainda e sempre, só a mentira é verdade. Fecho
                                                              os olhos.


Antonio Gamoneda


(poema inédito publicado no número da revista Zurgai de Dezembro de 2015)


*

Sobre la máquina del llanto

Una cinta de acero enloquecido entra en sí misma y sale de sí misma. Hiende las osamentas, dispersa los residuos, roe las pértigas, enardece los látigos, decapita los bronces. Baja a las celdas del óxido. Regresa a los anillos. Descansa. Pesa el silencio. No. Nada es verdad. A no ser, únicamente, acaso, el furor de las cintas, pero

la realidad anuncia su mentira. ¿Qué
es una mentira en
las entrañas del acero?
                           Descienden
cabellos desprendidos de la ira.
                                           Desciende
la incandescencia volcánica.

¿Quién vierte llamas y cabellos sobre la sed de las serpientes?

¿Qué es este nudo, esta
mecánica arterial, esta
tortura silvestre? No
hay salvación, no hay
frutos ni sombras en
la selva de acero.

¡Ah de los nudos, ah de las serpientes!

Un ser sin pensamiento induce el delirio de las cintas. ¿Quién? ¿Es ésta la pasión inversa que se deduce de la imposibilidad? ¿Es apenas una inclemencia digital? No sé. No me contestes. No hay nada que decir ni comprender. Ver, sólo ver, esta belleza cruel. Su víscera, su dentadura cónica, su vértigo.

Aún y para siempre, sólo la mentira es verdad. Cierro
                                                                     mis ojos.