- Testemunho de um descrente
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[texto
lido a 23/10/2015 na mesa redonda subordinada ao tema “O Silêncio de Deus” da VI
Jornada de Teologia Prática na Faculdade de Teologia da Universidade Católica
Portuguesa]
Queria começar por agradecer ao Instituto Universitário de Ciências Religiosas e ao Centro de Estudos de Religiões e Culturas que, na pessoa do Pe. José Tolentino Mendonça, tiveram a amabilidade de me convidar para esta Jornada de Teologia Prática. O convite apanhou-me de surpresa, tanto mais que eu não sou teólogo nem tenho qualquer tipo de formação ou conhecimentos especializados na área, mas não pude senão aceitar o desafio que me colocava de pensar a minha relação com Deus ou, mais concretamente, a minha relação com o silêncio de Deus, o que para um descrente como eu se reveste de uma urgência maior, dado que considerar o silêncio de Deus, ao invés de considerar apenas a inexistência de Deus, levanta o problema de saber em que medida é que a preposição que faz do silêncio um atributo de Deus não trai uma propensão para a crença ou, pelo menos, para a assunção de Deus enquanto possibilidade legitimada não só pela linguagem, como por um modo específico de sentir e de atribuir sentido ao mesmo silêncio que devia ser, por definição, ausência de sentido. Pois que se admito que o silêncio não é em absoluto – o que tão-pouco conseguiria conceber –, mas um predicado de outrem, predicado que tem a particularidade de efectuar o duplo movimento da ocultação e, ao mesmo tempo, da revelação desse outrem pela e na ocultação, sou forçado a admitir que se não faço o reconhecimento de Deus, tal deve-se ou a uma insuficiência do meu aparelho perceptivo, a uma imperfeição do meu diapasão que afina noutras frequências, ou à própria constituição desse silêncio enquanto vontade divina de se não dar a conhecer, o que, num caso como no outro, explicaria o meu malogro mas não traria tranquilidade ao meu espírito.
Mas pode um descrente viver em paz com a sua descrença? Tanto quanto um crente deve viver em paz com a sua crença, e pelas mesmas razões, dir-me-ão alguns de vocês. Colocar o problema da fé é, pois, colocar o primeiro problema sério da filosofia. Só depois se torna pungente o problema levantado por Albert Camus, em O Mito de Sísifo, de saber se a vida merece ser vivida. Porque se a consciência nasce do espanto de haver o que há, em vez de haver outra coisa ou não haver coisa nenhuma, é natural que a nossa primeira interrogação se dirija para o ser do mundo e a existência do que o explique, e só depois nos voltemos para o problema do julgamento que fazemos da nossa situação nesse mundo.
Colocar o problema da fé, contudo, não é para mim o mesmo que dar o primeiro passo em direcção à fé. A inquietação que atormenta tanto o verdadeiro crente como o verdadeiro descrente, o inconformismo latente que anima aqueles que vivem intensamente o irresolúvel problema de Deus, não os irmana no que seria o tortuoso caminho da fé. Como disse Raul Brandão na sua obra-prima, Húmus, «se Deus existe eu sou um homem – se Deus não existe eu sou outro homem completamente diferente»[1]. Não é irrelevante a resposta que me dê à questão da existência Deus. Dela vai depender o homem que me concebo e a minha atitude perante o mundo e a vida. Não se trata tanto do «se Deus não existe tudo é permitido» de Ivan Karamazov – a questão não é decidida primeiramente no plano ético, tão-pouco no plano escatológico –, mas de me reconhecer nos termos de um enraizamento ou de um desenraizamento que seriam a base ontológica a partir da qual se fundaria a minha relação com o meu ser e com o ser do mundo, para recuperar, ainda que deformada, uma lição de Simone Weil.
Ora, precisamente esse enraizamento do ser em Deus é para mim uma coisa ininteligível. Não disponho de meios para conceber o que seria esse outro eu capaz dessa identificação com o divino, em que é que consistiria esse enraizamento e que outra vida dele resultaria. Sei, no entanto, com Raul Brandão, que seria «outro homem completamente diferente». E sei também que esse outro homem não existe em mim senão como apelo a que seja, e que esse apelo, esse vago acenar ao longe, esse horizonte de si mesmo para que o homem sempre tende e onde sempre se espelha para reflectir o sorvedouro do seu próprio olhar, é ao mesmo tempo a notícia e a fonte do meu desenraizamento. Não é tanto na descoberta que faço de que Deus não existe que apareço a mim mesmo como um ser desenraizado, mas antes por me saber desenraizado desde o princípio que não descubro Deus em mim.
Que o desenraizamento de Deus é um dado original do ser humano é evidente se pensarmos que ninguém ama a seu Deus antes que Este lhe seja revelado. Somos essencialmente incompletude. O que nos caracteriza enquanto humanos é a consciência atordoante dessa incompletude que nos faz virar para fora de nós em busca do que nos complete e justifique. Somos atirados para o mundo para nele nos realizarmos, e o limite a que aspiramos é o da bem-aventurança em que existiríamos já realizados. É o apelo dessa bem-aventurança sem esperança que perseguimos, uns através de subterfúgios com que iludem o abismo que reflectem no espelho, buscando redenção nas coisas terrenas, glória, fama, dinheiro ou apenas o último bem de consumo, imersos no estribilho do mundo; outros aceitando a impossibilidade de tudo, vivendo a sua incompletude como uma chaga que aprendem a estimar como seu refúgio e seu refrigério, um lago de sangue à beira do qual se sentam a cismar, resignados e convictos; outros, mais temerários, sacrificando tudo à voragem da sua fome, aceitando tudo e tudo acolhendo no precipício do seu coração, tudo recebendo no seu alforge, tanto mais vazio quanto mais cheio; e os outros, os cavaleiros da fé, na feliz formulação de Kierkegaard, os que foram capazes de realizar o movimento paradoxal da fé, que tudo aceitam na sua incompletude, que tudo sacrificam à voragem da sua fome, e que mesmo assim têm a audácia de esperar o impossível: que Deus quebre o selo do seu silêncio e diga o seu nome, e que o seu nome seja a sua secreta palavra de silêncio. Então o Verbo coincidirá com a escuta e Deus resgatará ao mesmo tempo a faca que Abraão empunha e o pescoço fremente de Isaac. Então o sacrifício estará consumado e a vítima e o algoz estarão salvos. Então o ser enraizar-se-ia e o rumor das raízes a latejarem sob a terra seria um rumor que embala.
Como Kierkegaard, aliás, Johannes De Silentio, também eu admiro os cavaleiros da fé e a sua figura modelar, Abraão, mas como para ele, também para mim eles me são «ininteligíveis e apenas posso admirá-los»[2]. Também com ele acredito que «A história celebrará os grandes homens, mas cada um foi grande pelo objecto da sua esperança: um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas – mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior»[3]. A medida da nossa esperança é a medida da nossa grandeza, e quem espera em Deus é o maior de todos. Mas e quem desespera sem Deus? Quem desespera sem grandeza e sem Isaac? Ainda Kierkegaard: «só o angustiado encontra repouso, só aquele que desce aos infernos salva a bem-amada, só quem empunha a faca recebe Isaac»[4]. E que acontece àqueles que descem aos infernos e não salvam a bem-amada e empunham a faca e não recebem Isaac? O que acontece àqueles a quem Deus envolveu nas suas brumas e no seu silêncio e a quem escondeu o seu rosto? Não tiveram eles fé suficiente?
Pensar o silêncio de Deus no século XXI é lembrar-nos de todas as vítimas de todas as guerras e de todas as fomes e de todos os agravos e de todas as ofensas, e é em particular lembrar-nos das vítimas do Holocausto. Podemos nós lançar-lhes a acusação de que não tiveram fé suficiente, ou, pelo contrário, devemos antes lançar a acusação sobre o silêncio de Deus nas horas de agonia nas câmaras de gás?
Alvitrei, no preâmbulo desta exposição, que a questão do silêncio de Deus é uma questão traiçoeira para um descrente. É verdade que o silêncio pressupõe ausência de som, mas tenho presente os ensinamentos de Jean-Paul Sartre, quando lembra, em O Ser e o Nada, que «a ausência define-se como um modo de ser da realidade-humana [e, neste caso, da realidade-divina] relativamente aos lugares e sítios [ou sons, acrescento eu] que ela própria determinou pela sua presença”[5]. A ausência de som e, logo, de sentido, só se torna manifesta porque uma presença de sentido foi antes o modo de ser do que agora é ausência? Não escutamos Deus porque Deus nunca falou ou porque Deus deixou de falar? «Em particular, diz ainda Sartre a este propósito, a ausência pressupõe a conservação da existência concreta de [outrem]: a morte não é uma ausência. Sendo assim, a distância de [mim] e [outrem] não altera em nada o facto fundamental da [nossa] presença recíproca»[6]. Se Deus falou, se Deus foi Verbo encarnado, Deus fala ainda e o seu silêncio é o seu modo de se expressar. Nesse caso, o seu silêncio seria pleno de sentido e nós apreenderíamos a palavra divina através da própria substância que a nega. O movimento que nos levaria a superar este absurdo é o que Kierkegaard chamou o movimento paradoxal da fé.
Mas para um descrente como eu, para alguém que só pode admirar Abraão, seguir-lhe os passos de perto, mas nunca habitar o seu pensamento, como entender este silêncio que seria de Deus se Deus existisse e que, não existindo, é apenas silêncio sem rosto por trás a perscrutar? Pessoalmente, não posso entendê-lo senão como afronta, como elemento instigador, como apelo a que fale, a que o interpele e o torne redundante, combatendo a sua impassibilidade com as minhas injúrias. O silêncio não é, mas deveria ser de Deus. E é só essa a reivindicação que podemos fazer. Não é outra coisa o que procuro quando de vez em quando, muito de longe em longe, escrevo um poema.
«O que fica, porém, instituem-no os poetas», dizia Hölderlin, o poeta louco alemão. E Heidegger comentava: «O que fica é o ente, e é-o pelo seu ser. O poeta é o que institui o Ser. (…) Se este instituir, enquanto poesia, for um dizer, isso significa simultaneamente: transpor o projecto para a palavra – colocá-lo no ser-aí de um povo como dizer (Sager) e dito (Gesagtes), como fábula (Die Sage) e assim colocar esse ser-aí pela primeira vez de pé, fundá-lo»[7]. Não estou seguro de que seja o poeta a fundar o Ser. Talvez, sem dúvida, o ser de um povo, como aconteceu com o nosso Camões, como aconteceu com Cervantes no que respeita ao ser do povo espanhol, como aconteceu com os inexcedíveis poetas que escreveram a Bíblia. Mas fundar o ser de um povo não é fundar o ser do Ser. Esse funda-o Deus, tê-lo-ia fundado Deus. Ao poeta cabe advertir essa fundação e protestar por se tratar de uma fundação sem fundamento. Algo como um esbracejar de náufrago, responder-me-ão. E eu anuirei. Um esbracejar que afunda mais do que salva. Mas é no lançar de mãos que assenta o impulso mais básico do ser humano, que assim aspira a mais do que alcança, que assim se alcandora e projecta através do rogo, da súplica, da blasfémia e da censura.
Recordo-me sempre destes versos de Antonio Gamoneda: «Se falas a um deus, quando responde, / vem a morte por correspondência»[8]. Esta seria uma bela maneira de morrer. Mas Deus não responde nunca, e o que vem por correspondência é apenas a afronta do seu silêncio instigando a nova réplica e à denúncia da insuficiência dos deuses. É essa mesma denúncia que a pensadora espanhola María Zambrano diz caber aos filósofos e aos tragediógrafos gregos: «Tal como o filho que se separa do pai e luta com ele e, no entanto, não poderia ter existido sem ele, assim o pensamento filosófico e a afirmação da pessoa humana contida na tragédia denuncia a insuficiência dos deuses, e entra mesmo em conflito com eles»[9]. E aos poetas, herdeiros da tragédia, não lhes cabe outra coisa senão insistir sem esperança na mesma denúncia, porque a denúncia é a transcendência possível da nossa condição, que é só o aspirar a sê-la. A poesia, disse-o noutro lado e agora repito-o, é a linguagem que utilizamos para falar aos deuses, não aquela com que eles nos respondem. A poesia não comunica o incomunicável, mas comunica-se com o incomunicável.
O silêncio de Deus é, pois, o campo onde germina o poema, aquilo a que vulgarmente chamamos a folha em branco; e a nossa angústia ante a folha em branco é a nossa angústia ante o silêncio de Deus. É por isso que não posso concordar com a assunção de Theodor Adorno de que não seria possível escrever poemas depois de Auschwitz. Pois quanto mais denso é o silêncio, mais pungente a nossa necessidade de o confrontar. E ao fazermos-lhe frente, que fazemos nós senão alimentá-lo com as nossas esperanças, enchê-lo até rebentar com o eco das promessas que exigimos que nos faça? Até que se cale o eco e nos calemos nós, e tudo seja redimido no silêncio da desaparição.
María Zambrano fala ainda da «vida de cada homem que não é nem pretende ser filósofo, que vive simplesmente a ausência de Deus. E nesse viver sem Deus ainda se distingue a simples aceitação quase inconsciente desse impulso, dessa violência, dessa estranha esperança que resume a realização do humano, a promessa final da nossa história sobre a terra, no desaparecimento total da consciência de Deus»[10]. Gosto de pensar que também em mim, descrente como sou, se distingue ainda essa «estranha esperança que resume a realização do humano».
REFERÊNCIAS
Brandão,
Raul, Húmus, Lisboa, Bertrand
Editores, 2011.
Heidegger,
Martin, Hinos de Hölderlin, Lisboa,
Instituto Piaget, 2004.
Kierkegaard,
Sören, Temor e Tremor (3.ª Ed.),
Lisboa, Guimarães Editores, 1998.
Gamoneda,
Antonio, Oração Fria, Lisboa, Assírio
& Alvim, 2013.
Sartre,
Jean-Paul, O Ser e o Nada, Lisboa,
Círculo de Leitores, 1993.
Zambrano,
María, O Homem e o Divino, Lisboa,
Relógio d’Água, 1995.
[1] Brandão,
Raul, Húmus, p. 69.
[2]
Kierkegaard, Temor e Tremor, p. 137.
[3] Ibidem, p. 30.
[4] Ibidem, p. 39.
[5] Sartre, O Ser e o Nada, p. 288.
[6] Ibidem,
p. 289.
[7]
Heidegger, Hinos de Hölderlin, p.
202.
[8]
Gamoneda, Oração Fria, p. 33.
[9]
Zambrano, O Homem e o Divino, p. 54.
[10] Ibidem, p. 118.
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