quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Poesia e solidão



A poesia não se faz de correntes nem de contra-correntes[1]: a poesia faz-se de solidão. É em solidão que a escrevemos e em solidão que a habitamos. Ou melhor, investirmo-nos da sensibilidade poética é investirmo-nos da nossa solidão, inundarmos a mudez do mundo com o halo de uma autenticidade que nos pertence e que a ele reclamamos, por vezes, quando o que é excessivo em nós não encontra eco no silêncio fechado do que nos rodeia.
É comum, e talvez não despicienda, a noção de que a origem da poesia está historicamente associada ao aparecimento do culto religioso, esse elemento unificador das sociedades, mas também de confronto com as forças incoercíveis da natureza e com a inelutabilidade da vida. Creio, sobretudo, que o dado consumado de que morremos não é alheio à intrínseca necessidade que o ser humano experimenta de fazer a sua vida confluir para situações em que o sentimento estético actua como elemento redefinidor da existência, dando-lhe consciência da exiguidade e incomunicabilidade dos seus domínios, que no entanto se distendem e proporcionam algo semelhante a um alívio nessa distensão. Como disse a propósito da poesia de Antonio Gamoneda, a poesia dá-nos consciência da dimensão daquilo que entregamos à morte, ou seja, o nosso eu, opondo-o ao que sabemos que o extravasa porque, inacessível e inabitável, ainda assim se nos apresenta, mesmo que o não consigamos representar. Falo de Deus, o mais verdadeiro e mais vago dos conceitos.
A função litúrgica terá sido, pois, a função primordial da poesia, e se se pode dizer, embora seja discutível, que há poesia sem liturgia, o mesmo já não podemos dizer da afirmação inversa. Daí que, talvez, os melhores textos poéticos sejam aqueles que num dado momento histórico estiveram ligados ao culto ou – os meus preferidos – aqueles que na Antiguidade serviram para fazer a comunidade cultual comungar do sentido trágico da vida, o lugar privilegiado da experiência do absurdo que Camus define como «o desesperado confronto entre a interrogação humana e o silêncio do mundo».
A poesia é a linguagem que utilizamos para falar aos deuses, não aquela com que eles nos respondem. A poesia não comunica o incomunicável, mas comunica-se com o incomunicável. Ela não actua sobre o homem, ele é que actua através dela, libertando-se do seu excesso, fazendo-se enfrentar com o que o transcende e o que, por o transcender, lhe escapa. Falo do inominável. Todos nós temos perguntas que não sabemos formular, nenhum de nós está seguro de si ao ponto de não se interrogar acerca da sua contingência. Senão, porque escreveríamos ainda? Que a poesia o faça através de uma técnica e de uma tradição pouco acrescenta, a meu ver, ao problema, a não ser, talvez, pelo facto de a tornar susceptível de contrafacção. A história da literatura bem pode traçar o esquema evolutivo do fenómeno poético e identificar os elos de ligação entre cada uma das unidades de significação, conjugando-as em períodos, correntes e contra-correntes mais ou menos homogéneas, mais ou menos estáveis, mais ou menos emancipadas em relação às outras, mas jamais poderá manejar uma dessas correntes sem que os elos se rompam num processo virulento de auto-exclusão. Não há autenticidade sem exclusividade. Parece ser isso que Adorno tenta indiciar quando afirma que «as normas estéticas (….) ficam atrás da vida concreta das obras de arte», esse mais que encontramos nas grandes obras e que não lhes advém da sua arquitectura nem da ideologia nem das tendências a que dão expressão.
Mas a poesia não se substitui àquilo que, por estar ausente, é a causa da privação. Não é a poesia que é divina, ela dirige-se ao divino sem ter alguma vez a presunção de se identificar com ele. Ou antes, segundo Paul Celan, a poesia é algo que «testemunha a presença do humano»; não a do divino, portanto. Ou ainda estes versos da Sophia: «És um deus que nunca tem um rosto // Por muito que eu te chame e te persiga.» A poesia não redime, mas ela manifesta inequivocamente a necessidade de redenção, e eu não conheço dignidade para o ser humano que não passe pela consciência insatisfeita da sua incompletude, pela reivindicação da sua liberdade, pela insatisfação que não se compraz consigo mesma. A poesia não redime, mas estamos muito mais perto de redenção quando a redenção se torna em nós uma exigência iniludível. A fome: eis todo o consolo para as nossas vidas, eis a nossa grande ligação ao mundo. Porque, no fundo, o que poderia eu desejar se eu me chegasse? «O poema é solitário. É solitário e vai a caminho», diz-nos ainda o poeta apátrida de língua alemã.
Raros, porém, mesmo quando lemos poesia, são os momentos em que experimentamos este aprofundamento da vida, esta autenticidade que toma posse e faz emblema da privação. Lembra Cioran que «muitos só se tornam líricos nos momentos decisivos da sua existência; para outros, tal só acontece nos instantes de agonia, quando todo o passado se actualiza e se desdobra sobre eles como uma torrente. Mas, na maioria dos casos, a explosão lírica surge na sequência de experiências essenciais, quando a agitação do fundo do ser atinge o seu paroxismo». A poesia propicia, pois, a eclosão destas experiências extremas em que o desespero e a perda se harmonizam com a consciência do desespero e da perda e nos devolvem à vida mais pacificados, por um lado, e mais inconformados, por outro. A vida, como a poesia, é feita destes paradoxos, mais do que de correntes.
É a estas situações-limite que a poesia dá forma, embora a ela não estejam limitadas. Este conceito, cunhado por Karl Jaspers, foi entre nós redefinido por Vergílio Ferreira como «aquelas [situações] que nada têm a marginá-las, as que se determinam por um impacto que nos suspende a respiração, as que sobem do real e nos instalam no imóvel espanto, no silêncio que nos estala todo o ser, na evidência da morte, na evidência da beleza, no aviso oblíquo da irrealidade». Régis Jolivet, num estudo sobre Jaspers, vai ainda mais longe, ao afirmar que «o pensamento passa das situações no mundo às situações-limite, da consciência empírica à consciência absoluta, da acção relativa e condicional à acção incondicionada». Creio que o lugar da poesia é bem este lugar da «acção incondicionada», do exercício da plena subjectividade, desta força que rompe correntes e que não se compraz na identificação com os fenómenos de contra-corrente. Convenhamos, tanto umas como as outras, mas mais as segundas, porque as contra-correntes são fenómenos essencialmente sincrónicos, relevam do espírito gregário tão avesso à poesia. Só na expectativa do contacto com esta tensão «sem nada a marginá-la» é que a poesia faz sentido, caso contrário, ela seria mero jogo para comprazimento das nossas habilidades linguísticas.
Mas a solidão de que falo nada tem a ver com a reclusão, pelo contrário. Vergílio Ferreira distinguia solidão do isolamento. Para ele, uma e outra não eram a mesma coisa. «Porque o isolamento», diz ele, «implica um corte com os outros; [mas] a solidão implica apenas que toda a voz que a exprima não é puramente uma voz da rua, mas uma voz que ressoa no silêncio final, uma voz que fala do mais fundo de si, que está certa entre os homens como em face do homem só. O isolamento corta com os homens: a solidão não corta com o homem. A voz da solidão difere da voz fácil da fraternidade fácil em ser mais profunda e em estar prevenida.» O isolamento veda-nos o outro, a solidão, a substância em que os poemas medram, leva-nos ao encontro do irremediavelmente Outro, esse outro de nós que é a sombra à nossa frente para a qual caminhamos.
Quero terminar citando o conselho que Rilke dá ao jovem poeta – eu, afinal, sou um jovem poeta – e que me parece resumir aquilo que estou a tentar dizer. Diz ele: «temos de aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso e o mais inexplicável.»


[1] Texto lido na 15ª edição das Correntes d’Escritas, Póvoa de Varzim, a 21 de Fevereiro de 2014, numa mesa redonda subordinada ao tema De correntes e cont[r]a-correntes se faz a poesia.

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