A poesia não se
faz de correntes nem de contra-correntes[1]:
a poesia faz-se de solidão. É em solidão que a escrevemos e em solidão que a
habitamos. Ou melhor, investirmo-nos da sensibilidade poética é investirmo-nos
da nossa solidão, inundarmos a mudez do mundo com o halo de uma autenticidade
que nos pertence e que a ele reclamamos, por vezes, quando o que é excessivo em
nós não encontra eco no silêncio fechado do que nos rodeia.
É comum, e
talvez não despicienda, a noção de que a origem da poesia está historicamente
associada ao aparecimento do culto religioso, esse elemento unificador das
sociedades, mas também de confronto com as forças incoercíveis da natureza e
com a inelutabilidade da vida. Creio, sobretudo, que o dado consumado de que morremos
não é alheio à intrínseca necessidade que o ser humano experimenta de fazer a
sua vida confluir para situações em que o sentimento estético actua como
elemento redefinidor da existência, dando-lhe consciência da exiguidade e
incomunicabilidade dos seus domínios, que no entanto se distendem e proporcionam
algo semelhante a um alívio nessa distensão. Como disse a propósito da poesia
de Antonio Gamoneda, a poesia dá-nos consciência da dimensão daquilo que
entregamos à morte, ou seja, o nosso eu, opondo-o ao que sabemos que o
extravasa porque, inacessível e inabitável, ainda assim se nos apresenta, mesmo
que o não consigamos representar. Falo de Deus, o mais verdadeiro e mais vago
dos conceitos.
A função
litúrgica terá sido, pois, a função primordial da poesia, e se se pode dizer,
embora seja discutível, que há poesia sem liturgia, o mesmo já não podemos
dizer da afirmação inversa. Daí que, talvez, os melhores textos poéticos sejam
aqueles que num dado momento histórico estiveram ligados ao culto ou – os meus
preferidos – aqueles que na Antiguidade serviram para fazer a comunidade
cultual comungar do sentido trágico da vida, o lugar privilegiado da
experiência do absurdo que Camus define como «o desesperado confronto entre a
interrogação humana e o silêncio do mundo».
A poesia é a
linguagem que utilizamos para falar aos deuses, não aquela com que eles nos
respondem. A poesia não comunica o
incomunicável, mas comunica-se com o
incomunicável. Ela não actua sobre o homem, ele é que actua através dela,
libertando-se do seu excesso, fazendo-se enfrentar com o que o transcende e o que,
por o transcender, lhe escapa. Falo do inominável. Todos nós temos perguntas
que não sabemos formular, nenhum de nós está seguro de si ao ponto de não se
interrogar acerca da sua contingência. Senão, porque escreveríamos ainda? Que a
poesia o faça através de uma técnica e de uma tradição pouco acrescenta, a meu
ver, ao problema, a não ser, talvez, pelo facto de a tornar susceptível de
contrafacção. A história da literatura bem pode traçar o esquema evolutivo do
fenómeno poético e identificar os elos de ligação entre cada uma das unidades
de significação, conjugando-as em períodos, correntes e contra-correntes mais
ou menos homogéneas, mais ou menos estáveis, mais ou menos emancipadas em
relação às outras, mas jamais poderá manejar uma dessas correntes sem que os
elos se rompam num processo virulento de auto-exclusão. Não há autenticidade
sem exclusividade. Parece ser isso que Adorno tenta indiciar quando afirma que
«as normas estéticas (….) ficam atrás da vida concreta das obras de arte», esse
mais que encontramos nas grandes obras
e que não lhes advém da sua arquitectura nem da ideologia nem das tendências a
que dão expressão.
Mas a poesia não
se substitui àquilo que, por estar ausente, é a causa da privação. Não é a
poesia que é divina, ela dirige-se ao divino sem ter alguma vez a presunção de
se identificar com ele. Ou antes, segundo Paul Celan, a poesia é algo que
«testemunha a presença do humano»; não a do divino, portanto. Ou ainda estes
versos da Sophia: «És um deus que nunca tem um rosto // Por muito que eu te
chame e te persiga.» A poesia não redime, mas ela manifesta inequivocamente a
necessidade de redenção, e eu não conheço dignidade para o ser humano que não
passe pela consciência insatisfeita da sua incompletude, pela reivindicação da
sua liberdade, pela insatisfação que não se compraz consigo mesma. A poesia não
redime, mas estamos muito mais perto de redenção quando a redenção se torna em
nós uma exigência iniludível. A fome: eis todo o consolo para as nossas vidas, eis
a nossa grande ligação ao mundo. Porque, no fundo, o que poderia eu desejar se
eu me chegasse? «O poema é solitário. É solitário e vai a caminho», diz-nos
ainda o poeta apátrida de língua alemã.
Raros, porém, mesmo
quando lemos poesia, são os momentos em que experimentamos este aprofundamento
da vida, esta autenticidade que toma posse e faz emblema da privação. Lembra
Cioran que «muitos só se tornam líricos nos momentos decisivos da sua
existência; para outros, tal só acontece nos instantes de agonia, quando todo o
passado se actualiza e se desdobra sobre eles como uma torrente. Mas, na
maioria dos casos, a explosão lírica surge na sequência de experiências
essenciais, quando a agitação do fundo do ser atinge o seu paroxismo». A poesia
propicia, pois, a eclosão destas experiências extremas em que o desespero e a
perda se harmonizam com a consciência do desespero e da perda e nos devolvem à
vida mais pacificados, por um lado, e mais inconformados, por outro. A vida,
como a poesia, é feita destes paradoxos, mais do que de correntes.
É a estas
situações-limite que a poesia dá forma, embora a ela não estejam limitadas.
Este conceito, cunhado por Karl Jaspers, foi entre nós redefinido por Vergílio
Ferreira como «aquelas [situações] que nada têm a marginá-las, as que se
determinam por um impacto que nos suspende a respiração, as que sobem do real e
nos instalam no imóvel espanto, no silêncio que nos estala todo o ser, na
evidência da morte, na evidência da beleza, no aviso oblíquo da irrealidade».
Régis Jolivet, num estudo sobre Jaspers, vai ainda mais longe, ao afirmar que «o pensamento passa das situações no mundo às
situações-limite, da consciência empírica à consciência absoluta, da acção
relativa e condicional à acção incondicionada». Creio que o lugar da poesia
é bem este lugar da «acção incondicionada», do exercício da plena
subjectividade, desta força que rompe correntes e que não se compraz na
identificação com os fenómenos de contra-corrente. Convenhamos, tanto umas como
as outras, mas mais as segundas, porque as contra-correntes são fenómenos
essencialmente sincrónicos, relevam do espírito gregário tão avesso à poesia.
Só na expectativa do contacto com esta tensão «sem nada a marginá-la» é que a
poesia faz sentido, caso contrário, ela seria mero jogo para comprazimento das
nossas habilidades linguísticas.
Mas a solidão de
que falo nada tem a ver com a reclusão, pelo contrário. Vergílio Ferreira
distinguia solidão do isolamento. Para ele, uma e outra não eram a mesma coisa.
«Porque o isolamento», diz ele, «implica um corte com os outros; [mas] a
solidão implica apenas que toda a voz que a exprima não é puramente uma voz da
rua, mas uma voz que ressoa no silêncio final, uma voz que fala do mais fundo
de si, que está certa entre os homens como em face do homem só. O isolamento
corta com os homens: a solidão não corta com o homem. A voz da solidão difere
da voz fácil da fraternidade fácil em ser mais profunda e em estar prevenida.»
O isolamento veda-nos o outro, a solidão, a substância em que os poemas medram,
leva-nos ao encontro do irremediavelmente Outro, esse outro de nós que é a
sombra à nossa frente para a qual caminhamos.
Quero terminar
citando o conselho que Rilke dá ao jovem poeta – eu, afinal, sou um jovem poeta
– e que me parece resumir aquilo que estou a tentar dizer. Diz ele: «temos de
aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser
possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é
exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso e o mais
inexplicável.»
[1] Texto
lido na 15ª edição das Correntes d’Escritas, Póvoa de Varzim, a 21 de Fevereiro
de 2014, numa mesa redonda subordinada ao tema De correntes e cont[r]a-correntes se faz a poesia.
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