quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Anne Carson (I)

Ensaio sobre aquilo em que mais penso

Erro.
E as suas emoções.
À beira do erro está a condição do medo.
No meio do erro está um espírito de loucura e de derrota.
A descoberta do erro é acompanhada de vergonha e remorso.
Ou não?

Vejamos.
Muitas pessoas incluindo Aristóteles pensam que o erro
é um evento mental interessante e útil.
Na discussão sobre a metáfora na sua Retórica
Aristóteles afirma existirem três tipos de palavras.
Estranhas, vulgares e metafóricas.

“Palavras estranhas confundem-nos;
palavras vulgares exprimem o que já sabemos;
é através da metáfora que alcançamos alguma coisa nova e revigorante”
(Retórica, 1410b10-13.)
Em que consiste a novidade da metáfora?
Aristóteles diz que a metáfora torna a mente consciente de si mesma

no momento de cometer um erro.
Ele imagina a mente a mover-se através de uma superfície lisa
de linguagem vulgar
quando de repente
a superfície quebra-se e complica-se.
Surge o inesperado.

De início parece esquisito, contraditório ou errado.
Depois começa a fazer sentido.
E nessa altura, de acordo com Aristóteles,
a mente vira-se para si mesma e diz:
“Tão acertado, e ainda assim eu confundi-o!”
Dos verdadeiros equívocos da metáfora pode-se aprender uma lição.

Não apenas que as coisas são diferentes do que parecem,
e portanto as confundimos,
mas que tais equívocos são úteis.
Atentemos, diz Aristóteles,
há aqui muito que ver e que sentir.
A metáfora ensina a mente

a gozar o erro
e a aprender
a justaposição daquilo que é e daquilo que não é assim.
Há um provérbio chinês que diz,
O pincel não pode desenhar dois caracteres na mesma pincelada.
E ainda assim

isso é exactamente o que um bom erro faz.
Por exemplo.
Há um fragmento de um antigo poema grego
que tem um erro de aritmética.
O poeta parece não saber
que 2 + 2 = 4.

Fragmento 20 de Alcman:
    [?] fez três estações, verão
    e inverno e outono em terceiro
    e em quarto a primavera quando
    há floração mas para comer o suficiente
    não há.


Alcman viveu em Esparta no século VII a.C.
Esparta era um país pobre
e é pouco provável
que Alcman tivesse vivido uma vida saudável e nutrida.
Este facto está na origem das suas observações
que vão desembocar na fome.

A fome dá sempre a sensação
de ser um erro.
Alcman faz-nos sentir esse erro
com ele
através do recurso a um efectivo erro de cálculo.
Para um miserável poeta espartano sem alimentos

na despensa
no final do inverno –
chega a primavera
como uma reconsideração da economia natural,
quarta na série de três,
desequilibrando a sua aritmética

e elevando o verso.
O poema de Alcman irrompe a meio caminho pela métrica jâmbica
sem explicar
de onde veio a primavera
ou porque é que os números não nos ajudam
a controlar melhor a realidade.

Há três coisas de que gosto no poema de Alcman.
Em primeiro lugar o facto de ser pequeno,
leve
e mais do que perfeitamente económico.
Em segundo lugar por sugerir cores como verde-claro
sem as nomear.

Em terceiro lugar porque traz para primeiro plano
algumas questões metafísicas importantes
(como Quem fez o mundo)
sem análise manifesta.
Reparem que o verbo “fez” no primeiro verso
não tem sujeito: [?]

É muito invulgar no grego
um verbo sem sujeito, na verdade
é um erro gramatical.
Os filólogos dir-nos-ão
que este erro é só um acidente de transmissão,
que o poema tal como o recebemos

é seguramente um fragmento retirado
de um texto maior
e que Alcman certamente
nomeou o agente de criação
no versos que precedem os que aqui temos.
Bem, pode ser.

Mas como sabem, o objectivo principal da filologia
é reduzir todo o encantamento textual
a um acidente histórico.
E eu não sou favorável a qualquer reivindicação de se conhecer
exactamente o que o poeta quis dizer.
Por isso deixemos o ponto de interrogação

no início do poema
e admiremos a coragem de Alcman
por confrontar-se com o que está entre parêntesis.
A quarta coisa de que gosto
no poema de Alcman
é a impressão que ele dá

de expressar a verdade sem ela disso se aperceber.
Muitos poetas aspiram
a este tom de lucidez inadvertida
mas em poucos ele é tão genuíno como em Alcman.
É óbvio que a sua simplicidade é falsa.
Alcman não é simples de todo,

ele é um mestre do enredo –
ou o que Aristóteles chamaria um “imitador”
da realidade.
Imitação (mimesis em grego)
é o termo de Aristóteles para os verdadeiros erros da poesia.
O que eu gosto neste termo

é a facilidade com que ele aceita
que o que nos fascina quando fazemos poesia é um erro,
a consciente invenção do erro,
o deliberado ímpeto e complexificação dos erros
dos quais pode sobrevir
o imprevisível.

Assim um poeta como Alcman
esquiva-se ao medo, à ansiedade, à vergonha e ao remorso
e a todas as outras emoções patetas associadas ao acto de cometer erros
de maneira a atingir
a verdade dos factos.
A verdade dos factos para os humanos é a imperfeição.

Alcman quebra as regras da aritmética
e ameaça a gramática
e joga com a forma gramatical do seu verso
de maneira a revelar-nos esse facto.
No final do poema o facto permanece
e Alcman não está menos esfomeado.

No entanto alguma coisa mudou no quociente das nossas expectativas.
Pois enganando-as,
Alcman aperfeiçoou alguma coisa.
De facto ele fez mais
do que aperfeiçoá-la.
Dando apenas uma pincelada.

Anne Carson, Men in the Off Hours
Tradução: João Moita

Antonio Gamoneda (XII)


O leite entra nas profundidades côncavas, o leite urdido nos rosados úberes de grandes vacas silenciosas. São torpes as vacas silenciosas. Fazem, porém, doação muito branca
à paixão enferma
de viver.

Viver: avançar cegamente
para o grande sono branco.

Suportado por mãos inocentes, sempre
o leite desce do cântaro habitado por sombras
até à fraternidade do pão no seu leito de vimes
e na sua descida traz uma assistência que convém ao cansaço
do nosso corpo transitivo.

                                                Jan Vermeer
pôs nas mãos de uma antiga rapariga
estas suaves matérias que nos perdoam e
nos permitem repousar vertebrados, desconhecer, mentir,
envelhecer,
ignorar por algum tempo a afiada pureza
dos limites.



Antonio Gamoneda, Canción Errónea
Tradução: João Moita

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Vicente Huidobro (I)

Prefácio

Nasci aos trinta e três anos, no dia da morte de Cristo; nasci no Equinócio, debaixo das hortênsias e dos aviões do calor.
Tinha um profundo olhar de borracho, de túnel e de automóvel sentimental. Lançava suspiros de acrobata.
O meu pai era cego e as suas mãos eram mais admiráveis do que a noite.
Amo a noite, chapéu de todos os dias.
A noite, a noite do dia, do dia ao dia seguinte.
A minha mãe falava como a alvorada e como dirigíveis a despenharem-se. Tinha cabelos cor de bandeira e olhos cheios de navios distantes.
Uma tarde peguei no meu pára-quedas e disse: «Entre uma estrela e duas andorinhas». Eis a morte que se aproxima como a terra se aproxima do balão que cai.
A minha mãe bordava lágrimas desertas nos primeiros arco-íris.
E agora o meu pára-quedas cai de sonho em sonho pelos espaços da morte.
Ao primeiro dia encontrei um pássaro desconhecido que me disse: «Se eu fosse dromedário não teria sede. Que horas são?» Bebeu as gotas de orvalho do meu cabelo, lançou-me três olhares e meio e afastou-se dizendo: «Adeus», com o seu lenço soberbo.
Por volta das duas, naquele dia, encontrei um avião precioso, cheio de escamas e caracóis. Procurava um recanto do céu onde resguardar-se da chuva.
Ao longe, todos os barcos ancorados nas tintas da alvorada. De repente, começaram a desprender-se, um a um, arrastando-se como estandarte em farrapos de incontestável alvorada.
Com a retirada dos últimos, a alvorada desapareceu por trás de algumas ondas desmesuradamente infladas.
Então, ouvi falar o Criador, sem nome, que é um simples buraco no vazio, belo como um umbigo:
«Fiz um grande ruído e esse ruído formou o oceano e as ondas do oceano.
«Esse ruído estará sempre colado às ondas do mar e as ondas do mar estarão sempre coladas a ele, como os selos aos bilhetes-postais.
«Depois teci um longo barbante de raios luminosos para coser os dias um a um; os dias que têm um oriente legítimo ou reconstituído, porém indiscutível.
«Depois tracei a geografia da terra e as linhas da mão.
«Depois bebi um pouco de conhaque (por causa da hidrografia).
«Depois criei a boca e os lábios da boca, para aprisionar os sorrisos equívocos, os dentes da boca, para vigiar os disparates que nos vêm à boca.
«Criei a língua da boca que os homens desviaram do seu papel, fazendo-a aprender a falar…, a ela, ela, a bela nadadora, desviada para sempre do seu papel aquático e puramente acariciador.»
O meu pára-quedas começou a cair vertiginosamente. Tal é a força de atracção da morte e do sepulcro aberto.
Podeis crê-lo, o túmulo tem mais poder do que os olhos da amada. O túmulo aberto com todos os seus ímanes. E isto to digo a ti, a ti que quando sorris fazes pensar no princípio do mundo.
O meu pára-quedas enredou-se numa estrela apagada que seguia a sua órbita conscienciosamente, como se ignorasse a inutilidade dos seus esforços.
E aproveitando este repouso bem merecido, comecei a encher com profundos pensamentos as casas do meu tabuleiro:
«Os verdadeiros poemas são incêndios. A poesia propaga-se por todo o lado, iluminando as suas consumações com estremecimentos de prazer ou de agonia.
«Deve-se escrever numa língua que não seja materna.
«Os quatro pontos cardeais são três: o sul e o norte.
«Um poema é uma coisa que será.
«Um poema é uma coisa que nunca foi, que nunca poderá ser.
«Foge do sublime externo se não queres morrer esmagado pelo vento.
«Se eu não fizesse pelo menos uma loucura por ano, daria em doido.»
Pego no meu pára-quedas, e da ponta da minha estrela em marcha lanço-me à atmosfera do último suspiro.
Rolo interminavelmente sobre as rochas dos sonhos, rolo entre as nuvens da morte.
Encontro a Virgem sentada numa rosa, e diz-me:
«Observa as minhas mãos: são transparentes como as lâmpadas eléctricas. Vês os filamentos de onde escorre o sangue da minha luz intacta?
«Observa a minha auréola. Tem algumas lascas, o que prova a minha ancianidade.
«Sou a Virgem, a Virgem sem mancha de tinta humana, a única que não o é pela metade, e sou a capitã das outras onze mil que estavam na verdade demasiado restauradas.
«Falo uma língua que enche os corações segundo a lei das nuvens comunicantes.
«Digo sempre adeus, e fico.
«Ama-me, meu filho, pois adoro a tua poesia e ensinar-te-ei proezas aéreas.
«Tenho tanta necessidade de ternura, beija-me os cabelos, lavei-os esta manhã nas nuvens da alba e agora quero dormir sobre o colchão da neblina intermitente.
«As minhas lágrimas são um arame no horizonte para o descanso das andorinhas.
«Ama-me.»
Pus-me de joelhos no espaço circular e a Virgem ergueu-se e veio sentar-se no meu pára-quedas.
Adormeci e recitei então os meus poemas mais belos.
As chamas da minha poesia secaram os cabelos da Virgem, que me agradeceu e se afastou, sentada sobre a sua rosa tenra.
E eis-me aqui, só, como o pequeno órfão dos naufrágios anónimos.
Ah, que bonito…, que bonito.
Vejo as montanhas, os rios, as selvas, o mar, os barcos, as flores e os caracóis.
Vejo a noite e o dia e o eixo em que se juntam.
Ah, ah, sou Altazor, o grande poeta, sem cavalo que coma alpista, nem que aqueça a sua garganta com o brilho da lua, mas com o meu pequeno pára-quedas como um guarda-sol sobre os planetas.
De cada gota de suor da minha testa fiz nascer astros, os quais vos deixo para que os baptizem como a garrafas de vinho.
Estou a perceber tudo, tenho o meu cérebro forjado em línguas de profeta.
A montanha é o suspiro de Deus, subindo em termómetro inflado até tocar os pés da amada.
Aquele que tudo viu, que conhece todos os segredos sem ser Walt Whitman, pois jamais teve uma barba branca como as belas enfermeiras e os riachos gelados.
Aquele que ouve durante a noite os martelos dos moedeiros falsos, que são unicamente astrónomos activos.
Aquele que bebe o copo quente da sabedoria depois do dilúvio obedecendo às pombas e que conhece a rota da fadiga, o sulco fervente que deixam os barcos.
Aquele que conhece os armazéns de recordações e de belas estações esquecidas.
O pastor, o pastor de aviões, o condutor das noites extraviadas e dos poentes amestrados até aos pólos únicos.
A sua queixa é semelhante a uma rede pestanejante de aerólitos sem testemunha.
O dia levanta-se no seu coração e ele desce as pálpebras para fazer a noite do repouso agrícola.
Lava as suas mãos no olhar de Deus, e penteia os seus cabelos como a luz e a colheita dessas frágeis espigas da chuva satisfeita.
Os gritos afastam-se como um rebanho sobre as colinas quando as estrelas dormem depois de uma noite de trabalho contínuo.
O belo caçador diante do bebedouro celeste para os pássaros sem coração.
Sê triste tal qual as gazelas ante o infinito e os meteoros, tal qual os desertos sem miragens.
Até à chegada de uma boca inflada de beijos para a vindima do deserto.
Sê triste, pois ela te espera num recanto deste ano que passa.
Está, talvez, no extremo da tua canção próxima e será bela como cascata em liberdade e rica como a linha equatorial.
Sê triste, mais triste do que a rosa, a bela jaula dos nossos olhares e das abelhas sem experiência.
A vida é uma viagem em pára-quedas e não o que queres crer.
Vamos a cair, a cair do nosso zénite ao nosso nadir, e deixamos o ar machado de sangue para que se envenenem os que vierem amanhã respirá-lo.
Para dentro de ti mesmo, para fora de ti mesmo, cairás do zénite ao nadir porque esse é o teu destino, o teu miserável destino. E de quanto mais alto caíres, mais alto será o ressalto, mais longa a tua duração na memória da pedra.
Saltámos do ventre da nossa mãe ou da ponta de uma estrela e vamos a cair.
Ah meu pára-quedas, a única rosa perfumada da atmosfera, a rosa da morte, despenhada entre os astros da morte.
Ouviste? Esse é o ruído sinistro dos peitos fechados.
Abre a porta da tua alma e sai para respirar do lado de fora. Podes abrir com um suspiro a porta que o furacão tiver fechado.
Homem, aqui está o teu pára-quedas, maravilhoso como a vertigem.
Poeta, aqui está o teu pára-quedas, maravilhoso como o íman do abismo.
Mago, aqui está o teu pára-quedas que uma palavra tua pode converter num pára-subidas maravilhoso como o relâmpago que quis cegar o criador.
De que estás à espera?
Mas eis o segredo do Tenebroso que se esqueceu de sorrir.
E o pára-quedas aguarda amarrado à porta como o cavalo da fuga interminável.

Vicente Huidobro, Altazor
Tradução: João Moita