segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Antonio Gamoneda (V)

A beleza
não proporciona sonhos doces; derrama-se
na insónia azul do gelo
e na matéria do relâmpago.

Em cal viva, em
lâminas queimadas,
gira sem descanso; a sua
perfeição é a vertigem.

A beleza não é
um lugar aonde os
cobardes vão parar.

Viva em sua luz
o meu pensamento. Quero
morrer em liberdade.
Antonio Gamoneda, Sublevación inmóvil, 1953-59 e 2003.
- tradução minha -

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Crítica de H. G. Cancela a "Miasmas"

o ritualismo
de forma persistente, e contrariando o prosaísmo contemporâneo, mantém-se em alguns autores a reivindicação da poesia como território ritualista e profanamente sacralizado. é uma postura que entende a poesia como alguma coisa anterior à escrita, alguma coisa que não cabe na própria língua e que só a custo se corporiza enquanto texto. é uma poesia que voluntariamente se instala naquilo que entende como a margem dos valores ou das expectativas.
o livro miasmas 1, de João Moita, é um bom exemplo de uma poesia de temática metafísica: vive da ideia do sagrado, mesmo quando supõe ou opera pela transgressão do religioso. a figura do poeta maldito, capaz de congregar num mesmo movimento a luz e a sombra, o horror e a beleza, surge como sujeito privilegiado desta escrita:

«Deus e Deus sabem que me agarro furiosamente,
que amo o fogo e o fogo atado à solidão. (…)»
2

o ritualismo do imaginário e do léxico suporta aqui uma intensidade semântica e um investimento subjectivo que não é muito comum. ao longo do livro vamos reencontrando uma poesia que tematica e semanticamente se situa no interior deste imaginário e vocabulário sobrecarregados. e no entanto, talvez os melhores momentos do livro sejam aqueles em que o autor opta por formulações que assumem a secura como retórica poética:

«XXXII

Confio-me às minhas transgressões.
Sempre que me afasto dos seus desígnios
a situação fica oh tão frágil.»
3

é uma poesia rigorosa, mas que ganharia em se libertar de algum imagismo e da sobrecarga retórica que a torna reconhecível. tem o mérito de afirmar a diferença face ao prosaísmo contemporâneo, mas não o de se afirmar como verdadeira alternativa.

1. João Moita, miasmas,
Cosmorama Edições, 2010.
2.
idem, 18.
3. idem, 40.

Texto pulicado no blogue Contra Mundum de H. G. Cancela.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Antonio Gamoneda (IV)

Prometeu na fronteira

I

Talvez passemos pelo mesmo tormento.
Um deus caído na dor vale tanto
quanto dor se esta supera o pranto
e se levanta contra o firmamento.

Um deus imóvel é um deus sedento
e a mim cobrem-me com o mesmo manto.
Eu tenho sede e o que levanto
é a impotência de levantamento.

Oh que dura, feroz é a fronteira
da beleza e da dor; nem um Deus
pode cruzá-la com seu corpo puro.

Ambos estamos de igual maneira
a ferro e sede da solidão; os dois
acorrentados ao mesmo muro.

II

E este dom de morrer, esta potência
degoladora da dor, de onde
nos vem? Em que deus se esconde
esta forma sinistra de clemência?

Uma única divina descendência
a esta zona de sombra corresponde.
Se falas a um deus, quando responde,
vem a morte por correspondência.

Se não fosse cobarde, se, mais forte,
num raio pudesse pela boca
expulsar este medo da morte,

como este imortal acorrentado
seria puro na dor. Oh, rocha,
meu mundo de sede, mundo olvidado!


Antonio Gamoneda, Sublevación inmóvil, 1953-59 e 2003.
- tradução minha -

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Toulouse-Lautrec, Lassitude, 1896.
A noite cai onde ponho a mão: dentro é uma lua que gela. Então procuro o ponto exacto onde conceber a mácula e amar a culpa. Cinco são as luas do meu regresso. Uma a uma, circularmente. O ácido que por vezes levo à boca é a minha sabedoria. Se então me escorre pelos lábios, saberei que delírio me toma? Que ciência descubro? Que inaudita beleza irrompe de mim? Eu sou a minha própria conclusão, a minha destinação. Se me rasgo, desvelo os astros que me espiam. E tantas vezes tropeço numa álgida alegria.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Duas notas estenografadas sobre poesia

§ A poesia é uma construção antropológica*, a actualização pela linguagem de mundos em potência ainda não concretizados. A poesia propõe assim um mundo-outro, construído pelo homem à imagem de Deus, inscrevendo na vida realizações que antes apenas se intuíam no ilimitado dos enunciados da linguagem humana. O ilimitado é de Deus, a inscrição é do homem.

§ A inscrição de novos mundos de linguagem no mundo não visa tanto corrigir o que existe, como violentá-lo. A poesia enquanto construção antropológica não pode aspirar, da mesma forma que a ciência não o pode fazer, à rectificação das regras que subsumem o mundo. Quando muito, a ciência pode descobrir por aproximação as leis mais ou menos imutáveis e aprender humildemente a manipulá-las, nunca a corrigi-las. A violência que a poesia exerceria no devir do mundo seria, portanto, da ordem da ofensa e não da transformação. Seria a lucidez possível de um juízo permanente cuja tensão se não deixasse afrouxar. Cuspir na cara do mundo não o muda, mas castiga-o. É essa talvez a única forma de nos mantermos frente a frente com ele. Pouca coisa, já se sabe, mas mais do que isso não se pode, e menos não vale a pena.
*fui buscar esta noção, bem como o dínamo para estas reflexões a Manuel Gusmão (cf. Tatuagem e Palimpsesto, Assírio & Alvim, 2010.)