sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Vincent Van Gogh, De hut, 1885.

Todos os dias, a esta hora, saio de casa para caçar. Dizem-me que não é a melhor altura do dia e que em breve a noite esconderá muitos perigos. Não sei do que falam. Todos os dias, a esta hora, saio de casa para caçar.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Antonio Gamoneda (II)


O grande vento da noite
entra, lento, nos trigais.

Deixa a tua mão na minha
que são os nossos esponsais.

Tomo-te porque a minha pena
tem a cor dos teus olhos;

porque o meu pão é moreno
como a tua carne.

Antonio Gamoneda, La tierra e los labios, 1947-53.
- tradução minha -

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Edouard Manet, Gare St-Lazare, 1872.

Sento-me com este livro das horas na gare de St. Lazare e espero que a manhã digira a sua luz. A minha filha escuta os seus demónios enquanto os transeuntes passam indiferentes à sua querela louca. Sei que vou encontrar a oração deste dia e que com ela estarei mais próxima da salvação. Quando a agitação nas ruas for de natureza menos equívoca, preparar-me-ei para regressar. Espera-me o fim da tarde e algum ardor.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Antonio Gamoneda (I)


Ninguém me ensinou uma lágrima;
não senti pulsar na minha garganta
o rouxinol sangrento da luz.

Uma vez disse: «Vem, Deus, vem aos meus lábios,
vem aos meus olhos e à minha sede.» E Deus
só era verdade no silêncio.

Antonio Gamoneda, La tierra e los labios, 1947-53.
- tradução minha -

domingo, 16 de janeiro de 2011

Caravaggio, O sacrifício de Isaac, 1596.


Senhor, bem vejo que favoreces o teu servo; a tua benevolência é o sinal da tua inesgotável misericórdia. Por esta exoneração, a minha boca abrir-se-á em teu louvor até ao fim dos tempos, e sempre meu coração arderá no fogo sagrado da gratidão. Mas não penses que retrocedo. Esse carneiro não é digno de ti, nem eu sou tão torpe que aceite de bom grado a troca injusta que me propões. Este animal não dá a justa medida do amor que tenho por ti. Que Isaac me perdoe.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Claude Monet, Poppies Blooming, 1873.
Ontem colhi papoilas. Escolhi dentre as mais vermelhas aquelas que menos gemiam ao vento da tarde e arranquei-as pelo caule. Coloquei-as numa jarra junto à janela onde o sol bate de manhã. Deixei os estores abertos e uma vela apagada. As papoilas eram o silêncio da casa quando eu cantava, e tantas vezes me dobraram sobre a página para que me desfolhasse. Às vezes penso que me vou erguer, mas é só o sangue eriçado. Toda a gente pensa que me distraio. As papoilas estão no vértice da casa à espera de Junho. Eu sou o mês do clamor. Toda a gente pensa que me baralho. A casa engole as papoilas com o sangue quando danço e nem os cepos baloiçam. Minha mãe tem um chapéu e uma sombrinha azul e anda por entre as papoilas a indagar as borboletas. Às vezes penso que me vou erguer, mas é só o seu olhar absorto em mim. Bebo água até não ter mais sede. As páginas tingem-se e nem eu amo a minha saliva doce. Toda a gente pensa que me arrepio quando me estendo na erva e o vento da tarde resfria a terra. Minha mãe não sabe que fico transido e que me ergo sob o sangue que me despenha. Ontem colhi papoilas. Hoje penso que vou morrer.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Miasmas (III)

XIX

A minha veia poética é alimentada a seringas
do alto da contrição.
Excita-me o que me definha.
O meu coração encolhe se usado como símbolo:
esta é a parábola da compensação.
O sujeito lírico afila-se em sua índole jazente,
verte uma veia,
aguarda do alto o alimento,
ergue-se nas patas –
estamos no domínio da moralidade.
Eu pronuncio-me apenas sobre o que é do domínio da agressão,
da beleza escorchada,
do bafo intravenoso.
Venho para anunciar que tudo contribui
para a hipóstase do recomeço.


João Moita, Miasmas, Cosmorama, 2010.